Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
26/05/2010 10h48
Nas fotos, Drummond, editor José Olimpio e Bandeira (1954). Eucanaã, Angélica e Heitor
ADESÃO E FUGA À REALIDADE, APEGO AO COTIDIANO E À ETERNIDADE. EIS AÍ O POETA MANUEL BANDEIRA COM SUA PRESENÇA TERNA E ETERNA

Manuel Bandeira foi o primeiro poeta encarnado que eu conheci --e não foi pessoalmente. Explico: todos os outros poetas de minha predileção adolescente já estavam mortos. Eram os românticos  Alvares de Azevedo, Castro Alves e Fagundes Varela. Os inconfidentes Claudio Manuel da Costa e Thomaz Antonio Gonzaga. O parnasiano Olavo Bilac. E até o originalíssimo e  inclassificável  Augusto dos Anjos.
Mas Manuel Bandeira, embora tivesse registrado este verso notável --bendita a morte fim de todos os milagres -- fugia a todas as regras e classificações do meu imaginário. Primeiro porque estava vivo-- ali mesmo-- na cidade maravilhosa. Sofria as contingências do tempo, morava em um Beco na Lapa --e tinha um quarto que iria ficar “intacto, suspenso no ar”. E isso me atraía de forma quase que sequestradora. Aliás, sua figura frágil, extremamente simpática e humilde, funcionava como um combustível a mais em minha admiração.
Tudo isso sem falar dos versos diretos e contundentes que mexiam com a minha alma. Eu também queria ir embora pra Pasárgada, e achava--junto com o poeta -- que a unica solução para os meus dramas, reais e imaginários, era dançar um tango argentino.
Um sem número de seus versos ressoavam, sempre pungentes e verdadeiros, em múltiplos momentos daquela fase inicial da minha vida : "a vida inteira que poderia ter sido e que não foi", "eu quero o lirismo difícil e pungente dos bêbados", "eu faço versos como quem morre","a paixão dos suicidas que se matam sem explicação", "Recife sem história nem literatura, Recife da minha infância"", 
Nunca deixei de amar as criações do poeta Manuel Bandeira--e também amei a criatura. Ou a imagem dessa criatura--já que não tive o privilégio da convivência e da amizade.  E sei que não estou sozinho nisso, pois como disse Otto Maria Carpeaux,  ele deixou versos inesquecíveis gravados na memória da nação brasileira.
Outro poeta, articulador da  Semana, crítico arguto e incansável batalhador da cultura brasileira, Mário de Andrade  atribuiu-lhe o epíteto de São João Batista do Modernismo. E segundo Sergio Buarque de Hollanda foi Manuel Bandeira o primeiro a utilizar o verso livre entre nós. Aliás, é importante relembrar o alvoroço causado pelo seu poema Os Sapos, uma espécie de hino nacional dos modernistas.  
Mas deixando essas questões de lado, quero destacar  a insidiosa presença do poeta Manuel Bandeira na efervescente vida cultural brasileira dos anos 60.
Ressaltemos que, naquela época, a sociedade inteira estava passando por transformações profundas. O russo Gagárin dizia que a terra era azul, a capital do Brasil foi transferida do Rio para Brasília, Kennedy foi assassinado, Janio renunciou, o Muro de Berlim foi construído em 1961, os Beatles explodiram nas paradas de sucesso e o golpe militar de 64 arrancou João Goulart da presidência.
Afora isso, missaias, jeans e roupas coloridas alteravam o comportamento e o layout da juventude. Todos buscavam liberdade sexual e de expressão. Mas quem não era hippie, não ficava de braços cruzados e se alinhava aos movimentos estudantis de protesto
Pois bem: no meio conturbado de tudo isso, a voz de um dos poetas mais admirados e inspirados do Brasil continuava presente, com seu estilo sóbrio, direto e aparentemente simples. Nunca se falou em voz tão baixa na poesia brasileira, nunca entre nós poetas nenhum contou nessa voz misticamente grave, a que entretanto não falta aguda vibração emotiva. Assim se referiu Gilberto Freire ao poeta Manuel Bandeira.
Mas ele mesmo, Bandeira, considerava-se um poeta menor. Conforme está escrito em Itinerário de Pasárgada tomei consciência de que era um poeta menor; que me estaria para sempre fechado o mundo das grandes abstrações generosas; que não havia em mim aquela espécie de  cadinho onde, pelo calor do sentimento, as emoções morais se transmudam em emoções estéticas: o metal precioso eu teria que sacá-lo a duras penas, ou melhor, a duras esperas, do pobre minério das minhas pequenas dores e ainda menores alegrias.
“Bandeira chega a elogiar e exaltar as coisas mais desprezíveis, os bichos mais abandonados, os objetos que não teriam destaque nem mesmo na casa dos dois mil réis. Há uma absoluta ausência de banhas nessa poesia esquemática e ascética: entendo que o poeta Manuel Bandeira, por esta ou aquela razão – aceito também a de ordem fisiológica – exerce na sua vida e na sua arte um método de despojamento, de desenfartamento que o afasta do espírito capitalista”.
Esta última observação é do poeta Murilo Mendes. E eu assino embaixo.
 
HOMENAGEADO NA FLIP, BANDEIRA AINDA MOSTRA SUA PODEROSA INFLUÊNCIA SOBRE A NOVA GERAÇÃO DE POETAS 
Mais de 40 anos depois de sua morte, o poeta pernambucano Manuel Bandeira ainda é pedra de toque para a nova poesia brasileira. Com seu estilo simples e direto, o autor, que "soube estar, a um só tempo, dentro e fora do modernismo", como diz Eucanaã Ferraz, ensina que poesia não é feita só de "rendinhas, sabiás, corações engalanados" – palavras de Angélica Freitas. E, por isso mesmo, tem-se mantido como guia, uma espécie de "estrela da vida inteira", como cita e ao mesmo tempo nomeia Heitor Ferraz, para toda a lírica que se quer agora.
Republico aqui trechos das intervenções desses três poetas na
Festa Literária Internacional de Paraty, do ano passado.
Alguém já disse que há dois tipos de poetas: os que admiramos e os que amamos. Amo e admiro Manuel Bandeira.Mas acho curioso que Bandeira sempre me pareça um autor que está em todos os "lugares". Poderia resumir dizendo que procuro mostrar o quanto os versos de Bandeira são complexos estética e existencialmente e o quanto a sua obra – ao contrário do que se pode pensar – é exigente e se entrega aos poucos.
Gosto de pensar que escrevo poesia, em grande medida, por causa desse poeta, que escrevo para poder, algum dia, me aproximar dele, tomando-o como mestre seguro. Isso é querer muito, eu sei.
Eucanaã Ferraz

Eu tinha uns 10 anos quando li Manuel Bandeira pela primeira vez. Foi no colégio. A professora de português nos trouxe este poema:
"Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos.// Quando achava alguma coisa,/ Não examinava nem cheirava;/ Engolia com voracidade.// O bicho não era um cão,/ Não era um gato,/ Não era um rato.//O Bicho, meu Deus, era um homem."
Foi o primeiro poema sem firulas que li na minha vida. Me nocauteou. Não havia nada ali só para embelezar. Desde pequenos, todos associávamos poesia a rendinhas, sabiás, corações engalanados. Mas esse Bandeira era diferente. Ele me fez imaginar o bicho homem no pátio de casa.
Desde então, volto sempre. E faço um serviço de utilidade pública: leio poemas do Bandeira para amigos, especialmente os de Libertinagem e Estrela da manhã, meus livros favoritos.
Minha vida me fez uma pessoa arredia a interpretações. Sou uma pessoa que cria. Deste lugar, posso dizer que é uma sorte ler a poesia do Manuel Bandeira
.Angélica Freitas

Na adolescência, quando comecei a me interessar por poesia, eu lia os poetas procurando respostas imediatas. Procurava aquele poema que me dissesse algo, que me ajudasse diante de algum impasse, alguma dor indeterminada. Posso dizer que Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade foram bons companheiros nessas horas.
E não me canso de dizer que Itinerário é um das obras mais bonitas da literatura brasileira. Muito do que aprendi de poesia veio desse livro, escrito numa prosa rara, envolvente, que guarda o tom de suas crônicas, mas num registro mais amplo e de maior fôlego.
Ainda bem que depois encontrei uma edição da Aguilar, de 1974, e que até hoje me acompanha.Minha ediçãozinha verde desbeiçada da Aguilar seguirá sempre comigo – até à hora da morte
.Heitor Ferraz
  

Publicado por Rubens Jardim em 26/05/2010 às 10h48

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