Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
23/10/2017 19h30
AS MULHERES POETAS...(100ª postagem)

LEILA FERRAZ  (1944). Poeta paulistana, ensaísta, tradutora, fotógrafa e artista plástica. Participou ativamente do Movimento Surrealista em São Paulo de 1965 a 1970. Em 1968 vai para Paris onde estreita contatos com o Movimento Surrealista Internacional. Em 1977 lança seu primeiro livro de poemas: Cometas . Em 1980 seu segundo livro : Poemas Plásticos. Em 1998 publica poema e ensaio em Surrealist Women -  An International Anthology editada pela University of Texas – Austin .

OLHOS BOIANDO

Aquarelados olhos teus e meus atravessam o mar em cristas

Passando pelas pernas das pontes

Me olho então

E perco meu olhar de vista

 

Aquarelados morros meus e teus

De indefinidos contornos devorando céus

Colando os ouvidos em nossos ventres a escuta de tempestades eternas

Jamais despencadas

Profetizando a ameaça dos sonhos e das ideias

 

Aquarelados olhos nossos

De portas abertas

E peitos e ventres a mostra na superfície do mar

Boiamos uma relação de serpentes

Numa sedução muda e fraterna

Entre as algas de um mesmo conhecimento

Nas verdades veladas das chapas de cobre riscadas e nos papéis queimados

 

Paisagens pela centésima vez repintadas

 

Perco meu olhar de vista

Desfoco todos os contornos de afogada

Disfarço minha morte

E quando nua pelo avesso sou mais nua

 

Acelerada enrosco-me entre árvores

Em curvas infinitas de passado infinito

Onde minha boca abocanha minha cauda

 

Boiando

Velocidades se deslocam em minha direção na superfície do plano mole

Aberta

Do centro de meu umbigo se estendem os pontos de fuga

Projetando já o início e o fim do meu trajeto

 

Deitada sobre o mar balanço num círculo de imagens disfarçadas

 

Vermelhos escondidos

Bocas murmurando palavras de cerejas

Palavras lidas entre nossas  bocas

 

Quero aportar-me lá

Mesmo

Sim

Sem talvez

Lá onde perco meu olhar de vista

E o sentido é um telhado de vidro

E o poeta o último pedaço possível

Para reconstruir um frágil nome

Indivíduo.

 

ONDINAS

Ainda bêbada de sono no limbo dos sonhos li uma a uma as tuas

palavras

Rasguei-as de seus sentidos e colei-as pela extensão do  meu

corpo

Desenhos sem geometria adornaram meus quatro cantos e as

                ondas dos desejos perderam suas marés

Vozes de espumas vorazes arrebentavam seus significados nas

                praias

Águas primordiais lambiam por entre tuas pernas e esquecias teu

                corpo no enlace das Ondinas

Cruzando-as e perdendo todos os vestígios da sensatez

Bocas cheias de espumas brancas beijavam as solas descalças

                de meus pés em conchas e me desfaleciam de prazer

Como impedir uma inspiração na umidade de Thalassa?

Não sucumbir ao naufragar pelos pudores de tuas conchas?

Deixei-me fustigar até verter sangue e dele te alimentei sem saber

                o que fazia

Anfíbios seres do mar devoluto ultrapassam símbolos sagrados

E em quedas sublimes uma vez mais em nós mergulhamos

 

OS PRISIONEIROS

Usei o negro como ponta de lança

E o vermelho como razão agonizante

Silenciei anarquicamente as portas

Das mãos entrelaçadas

Cobri montanhas traficadas  e

Infanta

Escutei as histórias que nunca ouvi

Abri os braços em revoluções do nada

E mais alto subi abrindo o céu a unhadas

Porque sou jovem

Tresloucada

Gêmea e apaixonada

Gritando palavras de ordem

Tirando panfletos da pedra

Numa corrente de mãos e construindo barricadas

 

Entrevi um pedaço da história arrancada a palmadas

Das ruas de Paris

E se Não dormi e se não comi

Fui corpo só pulsando sensitivo entre matracas

Que tentavam impedir a melhor das trepadas

A trepada do cio

A trepada fecundada

A trepada inesquecível

A trepada que funde

Viva a vida e viva a morte

A trepada do corpo

A trepada menstruada

A trepada que para o tempo

A trepada sem idades

A trepada de todas as gentes

A trepada sem pátria

A trepada bastarda

(esta trepada com  a vida foi plenamente gozada em maio de 1968, em Paris)

 

PRIMEIRO MESTRE-O MAGO

Meu rosto desfigurado e manchado pelas sobras dos tempos

Me contempla no palco iluminado apenas.

Centenas de velas acesas derretem em meus sonhos e perco

                Meu carro em um baralho de tarô.

Subo e desço as ladeiras sem fim no labirinto do meu sonho

                Até encontrar você.

Meu primeiro mago, meu bruxo de milhões de instantes.

Meu dia de Ulisses chegando a Ítaca.

Subo as escadas inexistentes do teu atelier mágico.

Quero pronunciar teu nome

                Mas me tapam a boca mil mãos de pais e mães inexistentes.

Lá no teu quarto samurai te vejo sobre o leito desfeito

De braços abertos e o sorriso pronunciando meu nome.

Venha e cole teu corpo nu ao meu Olimpo.

Sintamos a colagem perfeita construída milímetro a milímetro.

Grudados estamos e minha boca se derrete em tua saliva.

Somos a mistura carnal do prazer amoroso.

Nos queremos como fogo fátuo e nos tocamos como tocha e brasa.

Ardem as nossas peles em desfigurados olhares.

                Eu te beijo e tu me beijas.

Eu ainda viva e tu vivo apenas e para sempre neste meu sonho.

Amigo e primeiro mestre que saudades tenho de ti.

 

LUCIANE LOPES (1971) poeta paulista, nasceu e vive em Mirassol. É letrista e raramente passa um dia sem escrever algum poema. Estudou publicidade e propaganda na UNIRP, São José do Rio Preto e possui uma empresa de RH.Seu primeiro livro, O miolo do mundo é macio,será lançado brevemente, talvez ainda neste ano.

O AMOR QUANDO É ANTIGO

O amor sim

é bicho estranho

atrevido

Se veste de monstro

marinho,

faz carinho nas minhas

nádegas.

Arrebenta ondas nas ancas

-um pescador –

de baixo dessas

anáguas

 

PIRÃO

Alguns diálogos

ainda me estupram,

enfiam sua peixeira

nas minhas tripas.

Nunca fui avessa

aos maus tratos

[da minha própria

cabeça]

 

Se bem temperados

sou capaz de lamber

os falos.

 

ON THE ROAD

Por favor:

um amor pra viagem

e um suco de eternidade

 

INTERVENÇÃO CELESTE

minha oração

é mais subversiva

[do que a tua]

enquanto suporta

a salve rainha

te mordo as mãos

postas e o osso

sacro

ISABELA PENOV(1986) poeta, atriz e fotógrafa. Dedica-se à poesia falada e escrita. Seu trabalho em poesia falada pode ser visto na crescente cena paulista de slam (campeonatos de poesia autoral falada,) no seu canal no Youtube e também nos vídeos “Cuidado: Inflamável” e “Mal Menor”, ambos lançados no ano de 2015. Mantém o blog Semeaduras (isabelapenov.blogspot.com)

POEMA PRO MUNDO

Olhar o mundo

como se visto de uma estrela

(o passado espia o futuro):

um pequeno ponto em movimento num infinito em movimento -

como fosse uma bailarina no fundo do mar.

Olhar o mundo

como se visto da plateia:

no silêncio do espaço ecoa a voz de La Negra:

“cambia, todo cambia

cambia, todo cambia...”

enquanto elas giram - elas: a Terra, La Negra, a bailarina.

Olhar o mundo

como se visto de um satélite:

porção água,

porção nuvem,

porção terra.

Azul, branca, multicor

flutua.

 

Olhar o mundo

como visto num sonho

(o de dentro espia o de fora):

nada falta. Sua beleza está completa

e a gente vendo

como quem nunca viu

um mapa:

o mundo

como veio ao

mundo: nu

em sangue, vérnix, silêncio e

nenhuma,

nenhuma ínfima

fronteira.

 

POEMA EM PREFIXO

Basta. Desisto do verso.

Agora eu quero o in-

verso. Ou o reverso.

Eu quero agora o anti

verso. O diverso. Quero

o pluri, o multi, o uni

verso.

 

E depois

depois eu quero

o que vem antes.

Eu quero, eu quero, eu quero

muito mais, além e sobretudo eu

quero o

sub

verso.

 

o verso subnutrido

o verso subempregado

o verso subestimado, subjugado

sub

entendido

?

o verso subdesenvolvido,

um tanto subordinado

(mas insubornável)

ordinário, mas sub

versivo.

 

 

Subversivo verbo:

ação: miragem:

ver só: distr-

ação: paisagem.

 

Subatômico. Supersônico.

Parido na noite insone,

na voz dos sem-nome,

no cancro, na peste, no corte,

no pulso da veia do homem,

na fome.

 

O subverso supérfluo

e super

fluido.

O verso lido no vagão superlotado e

sublinhado

(a linha trêmula partindo as palavras)

mudo, entalado, apertado e

(next station)

superlativo.

 

Verso que sub

verta

verso que sub

leve

verso que sub

merja.

 

Subliterário, um verso que

para, fica, segue sub

vertendo lágrimas

moendo vértebras.

 

Vendável, mas não vendido.

Verdade, mas não verídico.

Superado, mas invencível.

Surgido no vendaval.

 

Sub verso sub

merso em mil.

 

Sublingual: profana hóstia, calmante, anti

ácido.

Nascido no submundo

perdido no subsolo

esquecido no sobretudo.

Subterrâneo etéreo

Suburbano convicto, invicto,

inviolável.

O subverso suprassumo do suplício. Um precipício

página adentro. Um início após o fim.

 

Sub, super, hiper, infra, intra, entre.

Entre.

 

O verso sem superego.

A gota da superdose.

O verso na superfície

de dentro.

O verso sem sobreaviso.

O verso do sobrevoo.

Um dia de sobrevida

- perverso.

 

O verso sob.

Ele sobe. Versa

sobre. Conversa.

 

Substantivo e substância

e subsistência e susto. E súbito.

E tanto, tanto.

 

Destruído, substituído, violado, ignorado, impossível.

Impossível. Festejado, sussurrado, entoado, preciso.

Subalterno.

Preciso. Eu quero.

Eu quero, eu quero, eu quero,

sobretudo e mais do que  o

di, re, anti, pluri, multi, trans, universo eu

quero o sub, apenas.

Esqueçam perfeições, cumes, topos,

ignorem o sublime e cuspam

na estrela da manhã: eu

quero o

sub

verso.

Eterno.

 

MAL MENOR

Mas o que o menino merece?

O menor. Aquele sinal de menos, aquele fora de prumo que perambula tão próximo.

O que merece o menor, o menos, o zero à esquerda de deus pai?

Merece pai?, merece pão?, merece ser peão?, ser campeão?

O que o menino merece?

Dois anos a menos, dois anos a mais, tanto faz, nunca mais?

O que o menino merece?

O menino da desmemória, na ladeira. O que te desmerece. O que ele merece?

O que esmorece de fomes e dores na guia. Merece alegria?, da mais barata?, vapor barato?

Merece um trato ou dormir com os ratos, ao relento?

Merece o vento no cabelo ralo?

ou merece descer pelo ralo?

o menino franzino da borda do mundo que acorda imundo no meio da sua tranquila madrugada.

 

Merece morada?, namorada?, moradia?,

mordida ou lambida de bicho, o menino?

Merece entrar mais cedo no inferno?

merece um terno cortado? um pescoço cortado?

um corte?, uma morte?, um trote a galope?

 

Já está estragado, o menino?

Já é podre maçã?, pobre maçã?, febre malsã no teu corpo exposto nas ruas?

Não merece moças nuas, sumo de fruta, duas luas?

A podre maçã, pobre maçã, o menino malsão que apodrece vai contaminar os outros meninos da caixa, da cesta, da sexta-feira?

Será que você vai morder essa fruta bichada, e acabar sozinho no meio do nada, tremendo de medo na calçada

igual o menino faz em

toda

madrugada, será?

 

O que o menino merece?

O que aquele menino merece?

E o teu menino, o que merece?

Merece ser menino?

Ou cada vez mais cedo,

calado,

logo merece ser gerido e gerado entre grades e correntes umbilicais,

no caos,

caindo no abismo do noticiário diário?

Não merece um canário?, um algodão doce?, uma chance?,

o que ele disse que merece?

 

E você, que já foi menino?

E o teu menino

o que merece?

 

A CONCEPÇÃO

Ela já tinha engolido

sapos, risos, esperma e palavras.

Gritaram-lhe:

“Engole esse choro!”

Engoliu

e ele choveu dentro dela.

De madrugada procurou um papel:

tinha lhe brotado um poema.

 

CARLA CARBATTI (1977  ) poeta mineira, é doutoranda em estudos da literatura e da cultura pela USC. Já teve poemas publicados na Germina, Mallarmagens, Alagunas, Diversos Afins, Escritoras Suicidas, Zunái, Jornal Relevo, Contratiempo. Estreou recentemente com o livro de poemas Cadencia do Caos.(2016)

[         ]

 o poema não tem

nenhuma missão ulterior

que conduza a uma explicação da vida

 

o poema é só

esta mosca triste

girando em volta de uma ferida

 

SOPRO

minha espécie tem anatomia para o escuro

para a palavra perecedeira cheia de vermelho nas bordas

para as roseiras e os pensamentos ao vento

para a solidão que enxerga pregos, lesmas, gatos

para os fatos não corroboráveis

e horizonte alongados de garças

tudo que se ajeita ao devir

ao movimento

mas estamos obrigadas a viver os acontecimentos

e as metamorfoses

sob a forma da Lei

nós, que mordemos a maçã,

sabemos

o território da boca

evoca outras gravidades, gradientes,

densidades, potências, realidades

outra linguagem

:fome: sede: sopro: salivas: mares

minha espécie permanece

até o último gole

até na garganta

pousar um pássaro

e no poema

o silêncio

 

e plá

de fato

o voo das borboletas

advinha a dança do caos

se trata de uma síntese

de silêncio e movimento

está em tudo

a leoa quando ruge

a vaca quando muge

o cavalo quando relincha

o balão quando incha

e plá

estoura no ar

faz circular

pequenas dimensões

de acontecimentos

então, pode ocorrer

de alguém ver o balão,

a vaca, a leoa ou cavalo

e escrever um verso

 

alguém ler o verso

e compor uma música

alguém escutar a música

e dançar

pode acontecer

não quer dizer que aconteça

a combinação dos elementos é caótica

a síntese é disjuntiva

já sucedeu de eu

dizer amor

e nenhuma estrela

acender no céu

 

MU...DANÇA

                                                    dance for love

                                                                   p. bausch

danço tuas palavras

a cada sílaba

a cada fonema

as reticências também

é preciso ir a menos

encontrar o silêncio                      os estilhaços

do que não há

vou até o limiar

catar estrelas no céu da tua boca

não são poucas as esquinas

onde me des-dobro

como diante de mil espelhos

perco as origens

 

encontro na falta

a multiplicidade

a possibilidade

de não ser

uma

a soma dos átomos é infinita

porque infinito o vazio

duas

os átomos não possuem

uma fronteira definida

como o amor o desejo

o   m o v i m e n t o

danço

sem coreografia

 

a palavra é instantânea

 

 

 


Publicado por Rubens Jardim em 23/10/2017 às 19h30

Site do Escritor criado por Recanto das Letras