Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
16/06/2008 00h46
MÁRIOGAMES, A ORIGINALÍSSIMA HOMENAGEM
 
Luiz Roberto Guedes, é paulistano, poeta, escritor e tradutor. Publicou, entre outros, Calendário Lunático - Erotografia de Ana K.(2000), Armadilha para Lobisomem 
(2005), e o Mamaluco Voador (2006) --livros que revelam grande originalidade e soluções limítrofes entre a prosa e a poesia, o coloquial e o erudito. MARIOGAMES é um trabalho dele, feito em 1993, em homenagem ao centenário de Mário de Andrade, que impressionou-me muito. Nesse poema vocês poderão ver que a matéria verbal oscila entre o lirismo e a sátira, o corpo referencial e o corpo linguístico. E tudo com dicção e voz muito próprias. Até o prefácio é originalíssimo. Mas não vamos perder tempo. Com a palavra o poeta Luiz Roberto Guedes:

                                                                PREFALSO
 
                        
                          “...ainda acabo forjando uma carta de Mário a mim mesmo”.
 
                                                                                     Antonio Callado
 
 
Mas os Mariogames... Serão Mariogramas genuínos?
Caso de possessão por mariolatria desvairada? Ou só
compulsão descarada de materializar a máscara,
mimetizar a voz, um mood, uns tons e timbres entre
os “trezentos-e-cincoenta” do Multimário de Andrade?
O caso é que hoje em dia essas incorporações não têm
nada de extraordinário ou original... Pois quando que
escrita mediúnica primou por ser única e original?
O espírito da coisa é arlequinagem por amor a Mário.
Visitação do fantasmário. Louvação do Mário vivo.
Vivomário!                                                 
 
 
 Irmão X
 
-- .- .-. .. ---   (*)
 
(*) Mário em código Morse   
 

                                                                                      “Garoa, sai dos meus olhos”
 
 
Garoa intemporal...
A mesma que matou o padre Manuel da Nóbrega...
A mesma Piratininga ensimesmada
Que costumava liquidar seus poetas...
Com estrela na gola, sem escola
Ou com mil hordas na cachola!
 
Uma camisa grossa de neblina
Veste a torre andrógina da Paulista...
Cartão postal alugado...
Ofusca o falobelisco
Obscuro no Ibirapuera...
 
Eh Megaburgo pardacento!
Os ossos dos jesuítas
Deviam sentir milhor
A mais-valia de um dia de sol...
Libidinal!
 
                                                                      -- .- .-. ..---
                                                                                        “Sou um tupi tangendo um alaúde!”
 
Solzão fogaréu lambe os vidros da Paulista...
Janeirão de ouro esparramado...
Luxo de luz! Brilhos incisivos!
O Museu de Arte megartrópode
Lampeja levíssimo sobre patas vermelhas.
Aqui ficava o Trianon das bofetadas líricas!
 
A Grande Boca range dentes de metal.
Sombra minha vadia se evade num pinote
                               prá sombra do parque...
Brisa preguiçando maciota,
Largando tapas de folhas soltas...
Ota, gostosura...
 
Deslizo e me tupiniquizo na mata mirim!
Espacejo meu olhar grávido de palavras.
As árvores usam crachás de identidade...
Borboletas borbolinando nas verdezas...
Cigarras que nem motores... Oficinatura!
 
Vai meu olho armado de palavras,
Que olho que vê sem palavras!
Fecho o olho ávido de ver,
Deixa ver se vejo sem ele...
 
Quanta voz de passarinho
Quanto zumbido zumbindo
Língua de folha falando
Ô que brisa cariciosa...
Nenhuma fala comigo
Acorda, índio cativo
Confinado em sapatos,
Chapéu, colarinho e gravata...
 
 
Tinturinha de tristura índia
Suspira mais fundo que a alma...
 
                                        O urrurbano trovoando surdo
Vaivagando volitando olho errante
Abraçador de aparências
Colando palavras na pele
De toda sensação serelepe...
 
Um ancião japonês recolhe folhas secas...
Trauteia um monotom oriental...
Risca ondas na areia cuma bengalinha de bambu...
Transporte do jardim minipônico
Pro aranhol do Burajiru!
 
Fauno perdido na vertigem verde!
Florando semprenunca da pedra,
O fauno de Brecheret desemaranha
                          músculos de pedra...
Refoge ao fogo fêmeo de Vei *
Soprando silêncio na siringe...
Quedê que não tem um índio de bronze por aqui!
Paulistanos! Nobres vereadores!
Carece um cacique da terra no Trianon!
 
Sensações serpentinando no coalho de luz...
O olho insaciado radiando palavras...
Nunca que tem silêncio em mim...
 
 
O olho vigilante do pássaro
Investiga ruídos de presenças.
O bico agressivo vai catando
Delícias invisíveis nos canteiros
Com AVISO - NÃO PISE.
Inteireza do passarinho
Pulveriza meu dicionário...
Fuga de flautas aflitas...
 
Meu olho silente mira agora
Uma folha que gira
— Velozmente! —
Prestes a voar
Solta no ar...
Quando?
 
[*Vei - A deusa-sol na mitologia indígena]

                                                                              [3]

 
“Futilidade, civilização...”
 
 
Noite de intensidades intermitentes...
Certezas de beleza tremulantes...
Futilidades multicoloridas...
Tempestade de sinais radielétricos
No espinhaço da Paulista!
 
Megaburgo acende seus nirvanas de néon
E fornece mil sensações sob encomenda...
Euforizações! Califórnias eletrônicas!
Copulações telefônicas! Disque Imaginários!
 
                                                          Chineses refogando yakisoba na esquina
Incas clandestinos tocando flautas andinas
Japoneses comendo pizza...
Moçada se rindo pra hamburgers...
Ou serão megaburgers? Macche!
Um mendigo moço petisca
num saco de lixo na calçada...
Ninguém não vê...
 
Nostracity dança frenética
                                      As últimas noites do século
E estala o látego do tempo
Sobre todo lombo...
Mas porém toda noite a tevê
vem vestir os nus...
 
Nada de novo sob o pico do Jaraguá...
Custa muito aprender o gosto
Do que é humano, seu mano!
 
 
-- .- .-. .. ---
 
 
[4]
 
“O sinal dos meus pés é invisivel agora...”
 
 
O rio Anhangabaú
É um rio que não há:
Está sepulto debaixo
Do viaduto do Chá.
Tem outro rio no alto,
Rolando pra-lá-pra-cá:
A multidão está só
No viaduto do Chá.
 
 
Cada um com seu tributo,
Com seu toma-lá-dá-cá,
No passo de contradança
Do viaduto do Chá.
Talqual monções se aviando
Cada qual com seu pra-já
Por sobre um rio havido
Que não tinha mais lugar.
 
 
Meu rebanho turbulento
— Minhas alucinações! —
Vai relendo os mudamentes
Entalhados nas feições...
É ver novelos de rios
Desenrolando distâncias...
Assim vão pastando os anos,
Verdes pastos de esperança...
 
 
Sob trapos e molambos,
Bem debaixo dos narizes,
A miséria faz seu rancho
De viventes invisíveis...
Em vão esmolando olhos...
A esmo... Sonambulando...
Fantasmas que nem o rio,
Fantasma subterrâneo...
 
Vem chuva lavar o vale!
Fogem farrapos em farrancho.
Águas e ventos guaiando
Prantos por rios defuntos.
E a correnteza arremete,
Que seu lema é avanço,
Recomeça em todo o braço,
Traça o rumo, risca o traço...
 
 
 
A multidão está só
No viaduto do Chá —
Cada um com seu minuto,
Cada qual com seu jamais.
Ronda que ronda, o rondó
Nunca acaba de acabar —
A multidão está só
No viaduto do Chá.
 
 
 
-- .- .-. .. ---
 
 
[1993 — Centenário de Mário de Andrade]
 

Publicado por Rubens Jardim em 16/06/2008 às 00h46

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