Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
13/05/2008 00h09
PAIXÃO: HERANÇA QUE NINGUÉM TIRA
30 de dezembro - Um dia muito mais do que especial. Papai e mamãe estão aí, bem diante de nossos olhos -- e comemoramos todos, hoje, suas bodas de diamante. São 60 anos de vida em comum. Na verdade, uma vida e um casamento absolutamente fora do comum. Eles continuam apaixonados, graciosos, viscerais. A missa foi um prêmio --para eles e para nós. O padre foi suficientemente sensível para servir como simples mediador dessas forças poderosas e invisíveis que se alinharam de alguma forma para nos possibilitar esse destino--e nenhum outro. E possibilitou a participação e a interação de nós todos naquele banquete místico. Chorei um pouco, mas com muita suavidade--como se estivesse sendo tocado para além do toque. Certamente houve a presentificação do Instante--essa fagulha de tudo ver e tudo sentir. Houve, também, a superação dos limites do corpo e de tantos outros convencionalismos. Uma sensação de abrangência súbita. De pertencer e ter pertencido a algo sem algoz. Solidariedade profunda umedecendo nossas raízes no chão de um bosque. E o bosque confirmando nossos vínculos com a vida em sua totalidade --quase sempre ignorada por nós. Eu falei vida, mas deveria ter falado amor. Seria mais exato e corresponderia a uma aproximação maior com essa realidade exemplar que me circundou e me envolveu durante esses meus 51 anos de existência. Graças ao privilégio de ter vivido cotidianamente--e sem nenhuma interrupção-- mais de 22 anos junto deles, eu pude aprender e guardar em mim tudo aquilo que é indispensável para uma existência digna, amorosa, feliz. Vê-los e com-vivê-los diáriamente, naquela época, ampliou com naturalidade a minha alma, expandiu sentimentos básicos e essenciais e sedimentou a minha fé na beleza, no amor e no prazer. Ao invés de amor ao poder, eles me ensinaram aquilo que eu mais prezo e respeito até hoje: o poder do amor. Isto pode parecer brega, e mesmo que este seja um valor ultrapassado hoje em dia, dadas as circunstâncias conjunturais de competitividade exacerbada, é esse sentimento que me guia, me estrutura e me dignifica. Nada me provoca tanta emoção como a generosidade humana e a beleza humana. Nunca senti inveja dos milionários e dos poderosos de plantão. O poder e o dinheiro embrutecem e embotam a alma dos homens.E não é só isso: eles são provisórios e efêmeros. O que já não acontece com a generosidade e a beleza que são conquistas interiores da alma e, portanto, não sujeitas às contingências e às vicissitudes do tempo. Em todos os lugares que já estive--e não foram poucos-- não levei minhas casas, meus automóveis, nem nenhum outro bem, que por sorte, casualidade e benção divina, consegui amealhar por aqui. O que me acompanhou sempre --e nunca me deixou com a sensação de pobreza ou solidão e desamparo--foi a vida que eu vivi, as músicas que eu ouvi, os poemas que eu li, as pessoas que eu conheci. Acho que a nossa única riqueza é constituida daquilo que ficou entranhado na gente: o sabor de um sorvete lambido na praia da meninice; a casa da infância que viaja no tempo com suas salas, com seus quartos e permanece intacta--suspensa no ar ; os cafezais da vó Sinhana mostrando que os caminhos são sempre paralelos e é preciso seguir; os lanches feitos pela mamãe no final das tardes; a alegria de reunir quase toda a família nas prolongadas e eternas férias de Solemar; o eczema na pele do vovô Bento e as suas construções verbais que me facilitaram adentrar na melhor poesia do Guimarães Rosa; a humildade legítima e legitimada de meu tio Juvenal. E mais os poemas declamados pela Tia Concha, pelo tio Dimas, pelo Tio Dirceu. E as músicas cantadas pelo Walter. E os mambos dançados pela tia Dulce. E a viola do Vovô Bento me mostrando os caminhos e as veredas do Grande Sertão . E o violão do tio Aparício, tio caipira de sangue, de solidão e de coração. E a biblioteca do colégio da tia Alice--primeira mulher da família a trabalhar fora de casa. E a vovó Elisa--filamento da luz mais fina a filtrar tudo aquilo que acontecia...E o que é a riqueza senão isso: receber essa herança dos seres amados, que embora nunca tenham me deixado propriedade alguma, me ofereceram a única riqueza que eu reconheço nesta vida-- que é aquela situada bem além do aparente e das exteriorizações. E isso o dinheiro não compra, nem o poder assegura. Ou você viveu isso e se tornou um agente dessas forças solidárias que não arrebentam nunca, ou você nunca saberá do que eu estou falando.

Publicado por Rubens Jardim em 13/05/2008 às 00h09

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