05/03/2009 12h04
ANGÉLICA : PRECISO DO VERSO PARA NÃO MORRER SECA
No alto de uma escada, estreita e imensa, sem corrimão --eu mergulho nos versos da poeta Angélica Torres. Estou na praia de Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália, muito próximo do local onde foi realizada a primeira missa no Brasil. O céu está limpo e a minha alma completamente desperta. Resta-me seguir os versos da poeta e buscar o grão e o graal do céu solar. Mas sem esquecer que a manhã sempre chega acendendo luzes no quintal e que a vida se ajeita livre das dores, dos receios sombrios e da insônia teimosa --ainda que por poucas horas. E que a poesia pode ser aquilo que já foi preconizado pelo poeta Jorge de Lima: invenção, revolução e salvação. Aliás, o que me fez lembrar disso foram estes versos da Angélica, incluídos no seu último livro, O Poema Quer Ser Útil, publicado em Brasília em 2006: preciso do verso para não morrer seca.
Fazendo essa referência, humilde e solene ao mesmo tempo, a poeta Angélica nos remete, de imediato, aos processos que fazem circular os nutrientes da língua e da linguagem. Acho que todos nós, poetas e não poetas, sentimos que a palavra poética inaugura, instala e dissemina uma comunhão afetiva e sensorial que se situa além ou aquém de qualquer compreensão racional. E isto porque, como bem disse o poeta Affonso Romano, na abertura do livro de Angélica, a poesia é um gênero de primeira necessidade para a alma humana. E ao contrário da prosa –que é totalmente analítica, dedutiva e subordinada ao encadeamento lógico do inicío-meio-e-fim –a poesia é síntese irreversível, atalho, curto-circuito, relâmpago. É uma espécie de alquimia e torna visível o invisível, dizível o indizível e essencial o contigente. E aqui vai um exemplo breve, rápido dessa inquestionável presentificação da beleza que habita as coisas e o mundo. Tomara que caia Um haikai Na tua saia Angélica Torres Lima nasceu em Ipameri (GO), em 1952. Cursou Arquitetura e Urbanismo na Universidade de Brasília (UnB) e Direção e Cenografia em Artes Cênicas, na Fefieg (atual Unirio). Formou-se em Comunicação pela UnB e especializou-se em edição de livros e periódicos pela Universidade de Wisconsin (EUA). Trabalhou em diversos jornais, geralmente em editorias de cultura. Publicou os seguintes livros de poemas:Sindicato de Estudantes (1986), pelo qual recebeu o Prêmio Mário Quintana de Poesia, do Sindicato dos Escritores de Brasília, Solares (1988), Paleolírica (1999) e O Poema quer ser Útil (2006). Já se ocuparam do trabalho da poeta Angélica Torres autores expressivos como Affonso Romano de Santana, Reynaldo Jardim, Ziraldo, José Carlos Capinam, Oswaldino Marques, Nicolas Behr e muitos outros. Mas vamos conferir a sua palavra poética: A pena Entre o hábito falho da lembrança da morte e a nudez da ausência flagrada de golpe o corte o soco a queda o choque. O vazio habitado, agora sabendo, de fato, do nada valendo a pena (do livro Paleolírica) O mago Da alma do velho pássaro falecido ouvi teu canto rouco, manso Sol ardente dor incendiante. Resisti Num haicai de três asas sem som de palavras bem-te-vi (do livro Paleolírica) SOLARES DE YPAMERI Vôo volátil, o vento tocou-me o pensamento em um jardim suspenso entre telhas de barro: olhos cerâmicos sombrearam o mundo * Desembrulhados ao humor dos feitos do céu os telhados guardam em meu olhar desabitado a alma da cidade vermelha, de barro, pairando no azul solar. (do livro Solares) GOYAZ NÃO HÁ MAIS Cortaram o meu Goyaz ao meio E não me pediram licença. Meu papagaio de infância degolado. Eu não tinha autorizado. Com o Norte, assim de mim apartado perdi o rumo no mapa. Levaram embora minha crença meu estado de nascença o contorno da minh’alma meu Brasil por excelência meu sentimento geográfico meu sentido de existência. Só deixaram o Sul, disforme, e a metade da minha ausência (do livro O POEMA QUER SER UTIL) POESIA SALVA Se a paisagem é inútil, se o que é bom para o lixo é bom para a poesia, por que o poema quer ser útil? – pergunta o poeta meu amigo. Ora, então não é ele sobretudo solidário e abrigo? (do livro O POEMA QUER SER UTIL) O poema quer ser útil ao mobiliário da noite solitária nesta casa. Pergunto à Musa, respeitosamente: -Compaixão? Ou inveja desta acre-doce amarga solidão? (do livro O POEMA QUER SER UTIL) Publicado por Rubens Jardim em 05/03/2009 às 12h04
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