Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
08/10/2009 13h11
JORGE DE LIMA: O MAIOR, O MAIS ALTO, O MAIS VASTO, O MAIS IMPORTANTE, O MAIS ORIGINAL POETA BRASILEIRO

Desde 21 de junho de 2006, o livro Jorge, 80 Anos está disponível no meu site, item e-books. Publicado em 1973, em homenagem aos 20 anos de sua morte e aos 80 de sua vida, Jorge ,80 Anos foi o estopim de um movimento maior: o Ano Jorge de Lima. Tanto o livro quanto o ano foram uma iniciativa minha com o objetivo de recuperar a memória e a trajetória de” um dos casos mais apaixonantes da poesia brasileira” conforme afirmação de Mário de Andrade.
Mas não foi só o poeta da Paulicéia Desvairada que entoou loas à Jorge de Lima. Raduan Nassar. autor de um livro absolutamente impecável e imperdível chamado Lavoura Arcaica, disse o seguinte: "É um caso estranho na vida cultural brasileira, o desconhecimento de Invenção de Orfeu  nos meios universitários, assim como em outras áreas --até as especializadas, pois sua publicação, daqueles tempos até nossos dias, fez, de repente, de todos os outros poetas mais ou menos oficiais  - como Drummond, Bandeira, Vinicius, Cabral --poetas de grandeza menor."
E o badalado poeta Mario Faustino, morto prematuramente, chegou a afirmar isso: "Para nós, todavia, pelo menos neste momento de nossa própria evolução, é Jorge de Lima o maior, o mais alto, o mais vasto, o mais importante, o mais original dos poetas brasileiros de todos os tempos."
E foi graças ao apoio de um time da pesada, incluídos aí Drummond, Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia, Raduan Nassar, Stella Leonardos, Povina Cavalcanti, Álvaro Alves de Faria, Walmyr Ayala e muitos outros, que o Ano Jorge de Lima conquistou dimensões nacionais e expressiva cobertura da mídia. Motivadas por essa reviravolta na trajetória do poeta Jorge de Lima, várias editoras republicaram suas obras. Até a Aguilar relançou, em 75,as Poesias Completas de Jorge de Lima, em convênio com o MEC/INL, a preços populares.
Para se ter uma idéia das dimensões do Ano Jorge de Lima, das suas repercussões e dos seus resultados, basta registrar o seguinte: Jorge de Lima foi tema de samba enredo da Mangueira no carnaval de 1975. Mas as repercussões não ficaram restritas à maior festa do povo brasileiro. Edu Lobo e Chico Buarque debruçaram-se sobre o poema O Grande Circo Místico, compuseram músicas e um disco foi lançado com grande sucesso.Um espetáculo de balé também foi montado, em cima do poema, e obteve grande êxito.
Fracasso mesmo foi a baixíssima procura que o livro Jorge,80 Anos obteve, em meu espaço, aqui, na Internet. Em pouco mais de três anos, ele só foi “baixado” por cinqüenta e oito visitantes. Ou seja: uma média anual de 19 raríssimos e escassos leitores. Apesar disso, não estou convencido que esse fracasso não possa ser revertido. E passo para vocês, trecho inicial do livro. E escolhi a melhor pessoa para falar do poeta: o próprio poeta. Aí embaixo está um trabalho de montagem de textos, espécie de introdução à vida e à obra de um dos mais importantes poetas deste país.

Nasci em União, no Estado de Alagoas, a 23 de abril de 1893.
(Lembrança da casa grande tenho muita. Mas forte mesmo, lembrança que eu possa escrever, registrada nos olhos abertos, nos ouvidos indignados foi o grito do Joca, a sua cara rompante:
-- Guia de cego! Guia de cego !
Sim, eu estava guia de cego. Puríssimo. Completíssimo, segurando a mão dela, tomando conta da menina cega- eu de seis anos,angelicamente besta, irresponsável, anódino, transparente como uma infância).
Criança cambembe eu tive dons que perdi.  Dons de apreensão da verdade, de Deus me tocando, dons além das medidas da razão humana.
(Faz de conta que os sabugos são bois...Faz de conta...e os sabugos de milho mugem como bois de verdade...e os tacos que deveriam ser soldadinhos de chumbo são
cangaceiros de chapéus de couro...É   boquinha de noite no mundo que o menino impossível povoou sozinho!
Em certa noite éramos seis em torno de uma esfera armilar povoada de insetos.
(O candeeiro familiar, grande, belga,a  querosene em que havíamos estudado carta de ABC, tabuada, fora deixado de lado. Prá que belga onde havia luz elétrica ? Porém o jeito de estudar residia na presença do candeeiro.  A luz, em cima, da lâmpada elétrica, era fria e distante. Minha mãe  compreendeu o efeito montessórico do candeeiro. Mandou buscá-lo. Apenas modernizou-o, substituindo o pavio por lâmpadas elétricas. Então o estudo vinha. E vinham meninos da vizinhança atraídos pelo que se passava à luz do candeeiro.)
Por volta de 1903 a mudança de nossa família prá capital do Estado.
(Caminhos inventados por quem não tem pressa de ir-se embora. Pelos que vão à escola. Pelos que vão à vila trabalhar. Pelos que vão ao eito. Pelos que se despedem da vida que é tão bela... Caminhos de minha terra onde perdi os olhos e os passos da meditação... Mundaú! --rio torto -caminho de curvas por onde eu vim para a cidade onde ninguém sabe o que é caminho.)
Em Maceió,  meu pai adquiriu uma casa térrea na rua do Rosário.
(Vi-me fascinado pela Igreja do Rosário adiante de minha casa. Na torre desse templo o galo metálico sotoposto atravessa meus livros e perdura em Livro de Sonetos e Invenção de Orfeu e toma o colorido de Orpington azul que meu tio Argemiro Barroso importava para o seu aviário à margem da Lagoa Mundaú.)
Antes de maio findar li Inês copiada por meu pai. Ele amava aqueles  versos de Camões.
(Eu era os meus sete anos, vendo-a vejo a própria poesia que surgiu intemporal, poesia que antevejo, poesia que me vê, verá, me viu. Musa aparecida de cem faces, Inês mirante, chamada Inês de muitos nomes, antes, depois, como agora, hoje distantes. Eterna, linda Inês, paz, desapego, porta recriada para os sem sossego.)
Rimando infantilidades, porém muito analfabeto, minhas bestagens agradavam mãe orgulhosa de seu filho.
(Meu pai me bote na escola/ de meu velho amigo Lau/ quero aprender com ele/ versos e não b, a, bá !!! ( 7 anos ). Tenho pena dos pobres, dos aleijados, dos velhos./ Tenho pena do louco Neco Vicente/ e da lua sozinha no céu.( 9 anos ).Vi um menino cego/ chorei por este  menino. Minha tristeza não nego/ Vi um menino cego/ Choro por este menino ( 10 anos ). Moro em frente da Igreja/ Vivo feliz com meus pais./ Menino que mais desejas/ Quando entras, quando sais? ( 11 anos ).
De mãos frias e trementes, apresentei ao prof.  Moreno Brandão, poeta e escritor, as folhas rabiscadas.
- De  quem são?
- Meus.
- Quem  lhe ensinou  isso?
- Aprendi por mim.
- Menino, na sua idade não se deve pensar nessas coisas. O tempo não chega para o estudo. Esse  negócio de verso  atrasa um bocado. Mesmo  porque isso não é verso. Tudo pé quebrado, errado. Prá se fazer versos é preciso estudar métrica.)
Fui à livraria comprar um livro de métrica. Não tinha. Ninguém tinha.
(Mais tarde, meu primo  explicou mais  ou menos como  era. Nos dedos. Oh! que saudades  que  eu tenho. Queu. Compreende, uma só. Da  aurora, dau. Compreende?  da-au, duas. Dau: uma só  sílaba. Compreende? Oh como  é  fácil! Facílimo!)
Comecei a fazer versos segundo as formas consideradas parnasianas, e um desses sonetos entrou para as antologias.
( Lá vem o acendedor de lampiões  da  rua!/ Este  mesmo  que vem infatigavelmente// Parodiar  o  sol  e associar-se  à  lua/ Quando  a  sombra da noite  enegrece  o poente!//
Um, dois, três  lampiões acende  e  continua/Outros mais a acender imperturbavelmente/ À  medida  que  a noite  aos poucos  se acentua/E  a palidez  da  lua apenas  se pressente.// Triste ironia  atroz  que  o senso  humano irrita:/--Ele  que doira  a  noite  e ilumina  a  cidade,/ Talvez  não  tenha luz na  choupana em  que  habita.// Tanta  gente também  nos  outros insinua/Crenças, religiões, amor, felicidade,/ Como este  acendedor  de lampiões  da  rua! )
Ainda com a cabeça inchada por diminutos sucessos, chego ao Rio.
(Onde  está a calma deste  mundo? Onde  está  o sossego?  Onde  está o  sono? Onde  está a infância sem crime? Onde  está a namorada  de velocípede?  Onde está o pátio  com as andorinhas  e  a fonte?  E  o  rio  de tua  meninice?  E as tardes  de  maio? E  as  primeiras estrelas  surgindo lá  em  cima da serra? E  os  sonhos  que penetravam  pelas pálpebras? E as sombras na parede? E  o  velho candeeiro familiar?  Isso  tudo onde  está ?)
Arranjei velocidade. Virei homem de cimento armado.
( Libertei-me  do  ar,  libertei-me  do fogo,  libertei-me  da  água,  libertei-me da terra. Sou escravo da máquina.  Transformo  lobo em  cão  doméstico, transformo raposa em lulu, transformo, venço, faço tudo, tudo, pois eu mesmo  sou  lulu, lobo  e  sou raposa. E  sou  escravo  da máquina. E  sou escravo  da máquina.)
Cadê você meu país do Nordeste que eu não vi nessa Usina Central Leão de minha terra?
(Ah! Usina, você engoliu  os banguezinhos  do país  das  Alagoas! Você  é  forte, Usina  Leão! As  suas  turbinas tem o diabo no corpo!  Você  geme!  Você  grita!  Você está  dizendo  que USA é grande!  Você está dizendo que USA é forte!  Você  está  dizendo que USA  é  única!  Mas eu estou dizendo que  você  é triste  como  uma igreja  sem  sino...)
Prá donde você me leva poesia-uma-só ?
(Ó irmã, agora que as noites vem cedo e paira por tudo uma tristeza enorme  e
o silencio é tão grande que os cães enlouqueceram  nas ruas, irmã, vem me relembrar  que crescemos  juntos quando  os  dias eram  compridos  e diferentes.  Irmã, se  tu  sabes signos para  mudar  o tempo,  vem. Vem  que  eu  quero fugir  para  outras paragens  onde  as gaivotas  sejam menos  inúteis e  haja  um coração em  cada porto.)
Cadê a luz trêmula da vela para alumiar o meu poema antigo?
(O  lirismo  perdeu a  sua  liturgia. As lâmpadas  Osram velam funebremente a poesia.)
É muito tarde! E tudo é uma inutilidade!
( A noite não tem berços embalando, nem borboletas noturnas, nem as saudosas assombrações.  A poesia não consegue encontrar  o  amor  nem os lábios sensuais. Mas  de repente  um  clamor acabou de se  ouvir. Será  a ária  dos meninos  mortos?
É  muito  tarde! A  noite não  tem flores, nem nuvens, nem  cabras-cabriolas. A  poesia não  consegue  ouvir as  fontes nem  os  acalantos nem  os  pássaros escuros. Meninos mortos, a  noite  que veio  é  sem  fim? )
Prá  donde que você me leva poesia-uma-só?
(Há ainda muita coisa  a  recalcar: ó linda mucama negra, carne perdida, noite estancada, rosa trigueira, maga primeira. Há  muita  coisa  a recalcar  e  esquecer: o dia
em que te afogaste, sem me avisar  que ias morrer, negra fugida na morte,
contadeira  de histórias  do teu reino, anjo negro degredado para sempre, Celidônia, Celidônia, Celidônia! )
Porém falo de meu ser todo poros, todo antenas.
(É  preciso se falar das criaturas, verdadeiras criaturas animadas, das vivências totais, arbítrio e tudo, alma, corpo  funesto e  essa  imortal perpetuidade  além, Deus  nas  alturas, nomes de terra  e nomes  eternados. Celidônia, Floreal, Inês, Lenora, Violante  e  outras criaturas exumadas. Depois a minha vila. Depois os meus  tontos  passos noutras  vidas, em Mira-Celi, muito  longe, longe sumidamente longe, e  aquém.)
E aqui estão nossas musas dos sete anos, inda  invisíveis, todavia perto.
(Eu não sei se é minha  musa, meu silêncio  ou  minha irmã, ilha, gaivota ou  maleita, ou quase  tudo, ou menina  enteada  e foragida, criada dentro  dos  becos, tempo
ou data  ou nome  ou  algo em  salinos ventos idos. Seu  nome? Quero  varrê-lo deste  navio  deserto, quero mesmo recalcá-la, desmontá-la  e libidá-la: inesá-la, lenorá-la.)
Nesse instante tudo parecia em pauta dupla, contraponto, eclipse, coisa obscura, difícil de contar.
(Um  transe  de magia  havia  no mundo  exaurido a ponto de espantar: Mira-Celi  descera entre  o ar e o mar.)
Eis o vago tropel dos seres todos nascendo amortalhados sem querer.
(Não  sei  se  era memória  o  que  eu falava, se era palavra  muda  o que  eu  ouvia, sei de  imensas presenças  que giravam, enxame numeroso  me seguia.)
E há seres, seres nunca vistos, ó esposa fria, rosa da morte, rosa do que for.
(Chamo  as  coisas com  os  versos  que eu  quiser.  O  nome  afinal  o  que importa  à  essência de  um  poema?)
Celidônia, Floreal, Inês, Lenora, Roselis, Violante, Abigail, Beatriz, Isadora, Albertina.
(As pessoas que eu nomeio são pessoas que existem.)
Quem me vê, vê janelas de infância num sobrado.
(Candelabro ou veleiro me  persigo.)
O rio de minha terra é o ABC da minha meninice.
(O  meu  passado correndo  para  o mar.)
Ouço o meu nome.
(Chamaram-me
me chamei
ou o tempo  me chamou?)
 
 

 

 


Publicado por Rubens Jardim em 08/10/2009 às 13h11

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