Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
12/02/2010 03h30
CARTA DA EUROPA AO MEUS PAIS
Tenho, sinto e vivo saudades maravilhosas de vocês. A cada momento --fácil ou difícil, belo ou feio, agradável ou desagradável-- volto à vocês. E esse voltar é muito parecido com este meu voltar às Igrejas antigas --e aos símbolos mais permanentes que permearam a minha vida de criança. Deixando marcas e ressoando preces pela vida afora.
Tenho certeza, e ela vai ficando cada vez mais clara e serena, de que ser filho de quem sou me deu a oportunidade de um exercício de liberdade -- de repudiar ou concordar -- de aprender sempre, de procurar errar menos, de escolher com mais critério e de estar sempre disposto a enfrentar o difícil caminho da beleza, da solidariedade e da verdade.
Sou grato, por exemplo, por estar simplesmente vivo, cheio de carências e imperfeições, e pertencer a esse continente e a essa geografia humana. Esses laços, e até os desdobramentos dele, me prendem ao chão da humanidade. E ao mesmo tempo libertam signos e significações muito especiais e específicas. Caso da palavra exuperyana cativar de tantos significados e lembranças. E desta monumental Catedral de Colônia.
Vocês não podem imaginar o que foi pra mim estar diante dela e de mim mesmo, recapturado na infância. Acho que essa emoção só poderá ser transmitida diante de um frasco de perfume que eu vi e gravei ainda muito pequeno. Mas isso é indizível e indivisível! Talvez seja partilhável em um plano mais profundo e abrangente --mas só realizável por essas raras pessoas escolhidas e enraizadas no viver e conviver da gente.
De certa forma, por conjunturas sempre inexplicáveis, recebi o legado da vida através de vocês. Não para ser do jeito que sou: cheio de precariedades e incompletudes. Mas do jeito que vocês gostariam que eu fosse: invulnerável à dor e cheio de felicidade. Hoje, depois dos meus 48 anos, posso confessar que o sonho e o imaginário de vocês tem muito a ver com aquilo que eu fui, com aquilo que eu sou e, provavelmente, com aquilo que eu serei.
Vocês me deram e me doaram as primeiras percepções desse estar aqui. Foi junto de vocês que eu respirei pela primeira vez. Que eu chorei pela primeira vez.  O primeiro abraço e o primeiro beijo vieram de vocês. Como vieram de vocês as primeiras palavras e as primeiras alegrias do viver. Depois vieram as primeiras alegrias do conhecer, do viajar, do amar. E é claro, as celebrações do conviver. Hoje, a minha resposta, amorosa, fraterna, é que estou apenas no caminho que vocês abriram para mim nessa longa travessia da vida.
Não sei, e acho que nunca saberei, mostrar ou demonstrar a minha gratidão e a minha alegria de ser o prolongamento e a continuação de tudo aquilo que vocês já viveram e nós já vivemos juntos.
Tento fazer isso com meus filhos. E não só com meus filhos, de conformidade com aquilo que vocês me ensinaram e fazem, cristocentricamente, até hoje. É certo que tem horas em que isso é muito difícil. Mas em boa parte do tempo isso não é complicado e é até mesmo muito simples e natural. E como é bom sentir isso: esses elos fortes que nos prendem à vida de pessoas amadas e nos enredam no chão único da humanidade. Sou réu confesso de muitos equívocos e erros. Mas cansei disso e hoje procuro, talvez com mais maturidade e fé, aparar as arestas da minha personalidade, arredondar as formas do meu ser, aceitar mais os planos e os espaços reservados às diferenças. Não tenho mais receitas prontas, princípios simplórios, chaves falsas que servem para qualquer porta.
Busco e intento compreender as razões e os modos de cada um de meus semelhantes. Ou dessemelhantes. Mas sou frágil e incompetente para tarefa tão árdua. Por isso abdiquei dos meus inconformismos infantis. Mas quero deixar claro que não abandono a minha percepção de criança. Nem a minha inocência. Nem a minha revolta e a minha alegria, sempre viscerais e espontâneas.
Confio --e espero continuar confiando-- na vida e no amor. E a demonstração mais clara disso é que estou aqui, de novo na Europa, vendo e vivendo junto da mulher e do filho amados, as mais inusitadas e estimulantes situações. Todas elas emocionantes e convergentes sob a prismática idéia da revelação. São depuramentos experimentais da nossa própria natureza e dos nossos próprios --ou impróprios -- valores, posto à prova em incontáveis situações e momentos. O célebre concerto para Violino do Tchaikovsky, por exemplo, está irremediavelmente ligado à minha infância e ao papai. E vocês não podem imaginar o que eu senti ao ouví-lo por esses caminhos encantatórios da Áustria e da República Tcheca.
Compramos uma fita em Praga e a gravação é, realmente, soberba, magnífica. Coisa que não é novidade nenhuma, pois no Leste europeu o time de cordas é sempre de primeira. E nem é preciso dizer como isso me fez voltar no tempo. Lembrei do Ruggero Ricci, da capa do disco e do papai, é claro, entusiasmado e emocionado com as frases melódicas e com aquele discurso sonoro romântico e comovente. E não dá pra deixar de chorar! De contentamento! De felicidade! E de saudade! Que impulsos misteriosos são esses que ecoam em minha alma aberta e encantada? O que o papai sentia ouvindo essa música na sala de casa, na Cristiano Viana, não pode ser muito diferente do que estou sentindo agora, 40 anos depois.
Que momentos de comunhão são estes que nos recolocam em nossos verdadeiros lugares, uns diante dos outros, uns ao lado dos outros, unidos por esse laço invisível das origens? Quantas emoções vividas pelo papai não tiveram e não estão tendo continuidade em mim, em espirais cíclicas? Quantos gestos e palavras não ficaram dentro de mim, ecoando e reverberando até nessa música? Pois é. Acho que viver é muito isso: esse reencontro forte e pleno com a paisagem humana de cada um de nós.
beijos amorosos do filho
Rubens /dezembro/1996 


Publicado por Rubens Jardim em 12/02/2010 às 03h30

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