Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
04/08/2006 10h01
EM DUINO A VOZ DO POETA - ESTE VIZINHO DE DEUS - DENUNCIAVA TODOS OS RAIOS DE LUZ QUE JÁ ME ATRAVESSARAM A ALMA
As cidades são cidades. As aldeias são aldeias. E Duíno, o que é? Plantada entre rochas e imensas falésias, situada quase nos limites fronteiriços da Itália com a antiga Iugoslávia, Duíno é Duíno. Dor fina, imenso mezzo giorno sobre o Adriático. Alegria ática, alegoria ética --que tarda, mas não falha. Altivez de luz na brecha mais íntima --ou ínfima? --de qualquer ato de celebração.
Viemos até aqui para ver, vivenciar e sentir a presença do poeta amado. E descobrimos, de imediato, que o antigo Castelo é propriedade privada e permanece chiuso. Portanto, inacessível a visitantes. Um enorme portão, com definidas e definitivas restrições, mostrava isso inquestionavelmente.
Apesar disso, das portas fechadas e das complicadas relações com esses símbolos situados entre o dito e o interdito, não foi tão difícil assimilar e deglutir mais esta nova impossibilidade. Ao contrário do que havia acontecido em Kusnacht e Bollingen, sacrários do Jung, e depois em Sils Maria, terra onde Nietzsche vislumbrou o além do homem, não houve nenhum traumatismo, nenhum ferimento. Apenas uma pequena decepção. Afinal, o simples fato de estar aqui já denunciava um excessivo privilégio nessa longa caminhada dos afetos.
Talvez por esse motivo outras portas se abriram. Certamente em sintonia com aqueles espaços onde o poeta percebeu os pássaros em vôos mais comovidos. Nós também estávamos, todos, mais abertos e comovidos aos desígnios que desde sempre estiveram à nossa espera.
A voz do poeta --este vizinho de Deus-- surgia nas raízes das plantas, ressoava nas pedras do caminho, tornava íntegros todos os apelos humanos -- e anunciava, com acentos de exaltação e louvor, todos os raios de luz que já me atravessaram a alma. A presença do poeta, renovada e constante em minha vida --comecei a ler Rilke quando tinha uns 17 anos--me propiciava uma profunda e indizível comunhão com a natureza, com a cultura. E com os deuses e os anjos colocados ao meu redor. Thiago estava ali. Christiano estava ali. Ana estava ali. E quem não estava ali, certamente ali esteve.
Tudo em Duíno acabou sendo esplendor. Aliás como profetizava o poeta em versos das suas Elegias de Duíno, traduzidas magistralmente por esse fabuloso ser e poeta que é a Dora Ferreira da Silva. A Ana descobriu o bosque, nas vizinhanças do Castelo, onde o poeta caminhava, contemplativo e inspirado, em busca dos sinais propiciatórios de sua missão. E não ficamos só nisso. A Ana leu uma das elegias em uma clareira altiva onde todos nós avistávamos o Adriático, as falésias imensas, os arbustos ainda outonalmente alaranjados e a soberba imponência solitária do Castelo de Duíno.
Acho que o mistério não foi suficiente para conter-nos. O sol despejava uma luz intensa sobre todos nós. E nós, sozinhos ali, pudemos ultrapassar os limites de nós mesmos numa legítima e inequívoca comunhão. Não havia mais o pai, a mãe e os filhos. Éramos uma coisa só a pulsar. Dentro da vida e defronte dos anjos que ignoram a sepultura dos vitrais.
Não havia mais nenhum desejo de mudar, de apressar o tempo, de levar a vida a seu limite ou a seu além. Estávamos ali fascinados com o soerguimento de terríveis apelos.
É mais ou menos verdade que tudo aqui é distância. Distância da língua. Distância das ruas. Distância das pessoas queridas. Distância de um jeito de ser. De um modo de proceder. Mas ao mesmo tempo, aqui em Duíno, tudo é lento e alento. É como se aqui tivéssemos encontrado a nossa casa, aquela soma de linhas, volumes, superfícies, vozes e silêncio. Eu só senti algo semelhante em Girona. E em Heidelberg --no natal místico, celebrado na salutar solidão de uma cabana que tinha tudo a ver com o nascimento daquela criancinha que iria inscrever uma nova tábua de valores.
"A isto se chama destino: estar em face do mundo, eternamente em face."

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Publicado por Rubens Jardim em 04/08/2006 às 10h01

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