Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
16/04/2010 13h43
FAZENDO JUSTIÇA AO POETA LUIZ CARLOS MATTOS
O poeta Luiz Carlos Mattos (1945-2000 ), integrante da Catequese Poética, só publicou dois livros: Ex-Exercícios(1966) e Lapidário Geral (1978), embora tenha contribuído de forma significativa para a divulgação de poemas e poetas. Ele foi responsável nos anos 70 por um projeto –os cadernos de poesia –que a partir das conquistas obtidas pela imprensa nanica, procurou alternativas para o livro. Os cadernos eram impressos em papel jornal, fartamente ilustrados e traziam encartados um pôster-poema duplo e um caderno extra, dedicados a ensaios, pesquisa e outros temas.
Infelizmente, os cadernos, que foram uma espécie de retomada do trabalho típico da Catequese Poética, movimento iniciado pelo poeta Lindolf Bell, logo após o golpe militar de 64, teve curta duração. Mas nem por isso deixou de ser uma iniciativa importante ao trazer à tona, depois de mais de 10 anos de silêncio, alguns poetas que se firmaram e ainda estão por aí, produzindo. Não é o caso dele mesmo, Luiz Carlos Mattos, morto em 2000, vítima de câncer pulmonar.
Mas seu livro, Lapidário Geral, publicado como um dos cadernos, apresenta-nos um poeta que soube distinguir e construir a sua palavra diante das outras palavras empregadas nas conversações e comunicações cotidianas. E o que caracteriza de forma relevante a linguagem poética é exatamente essa apropriação --e essa invenção. Na verdade, ao contrário de todas as manifestações  artísticas--caso do pintor, do músico, do escultor-- o poeta vive, como todos nós, emaranhado e imbricado em palavras. Só que é ela, palavra, a sua matéria prima. E a palavra é volátil, frágil e está permanentemente sendo utilizada --e ,o que é pior, sujeitando-nos a todo tipo de mal-entendido.
Por essa razão, e para fazer justiça ao trabalho poético de Luiz Carlos Mattos, resolvemos abrir esse espaço para dar a conhecer alguns poemas de sua lavra. Creio ser essa a melhor maneira de dar continuidade ao trabalho de divulgação de poemas iniciado com minha participação na Catequese Poética. Escolhi alguns poemas circunstanciais, extremamente vinculados aos acontecimentos posteriores ao golpe militar-- e que fizeram enorme sucesso em nossas leituras públicas nos anos 60. Mas os leitores também poderão apreciar poemas mais distanciados do palanque e dos salões. Sublinhamos aqui a dimensão lírica do poeta Luiz Carlos Mattos. 
 
A PASSEATA
Uma bandeira nova passava pela rua
(pensamos: muito importante era o dia)
Julgarás: renovado
Saía a passeata
Depois veio o cansaço
Aço aço
Construíam a nosso lado
Pensarás: arquiteturas
Passava a passeata
Ata ata
A ata na mesa do congresso
Esso Esso
Pensarás: progresso protesto
Petróleo
Óleo óleo
Olhamos tudo e não pudemos dizer nada.

VAMOS BRINCAR DE HERÓIS?
Vamos brincar de heróis?
Atamos verdades verdes pelas veredas,
Falamos das falhas e das mortalhas.
A canalha rompe, range e age
Na medida de ação da reação:
CASSAÇÃO CALADA
(não convoca-ação)
RUGE
Corre-se risco.
Mas nós não corremos rápido
Talvez pelo hábito de enfrentar,
De tentar e de estar na terra e não no ar
NOSSOS HÁBITOS.
Mas nos habituaremos ( um dia)
Com uma cidade casual que procura
Um álibi para explicar o abismo?
Um ISMO?
Uma solução decrépita ou demente?
Ou dissolvida pela mente?
Não se sabe ao certo.
Aliás, não se sabe nada ao certo.
Ou mais aliás ainda, não está nada certo.
Nem há nada perto,
E há que se nadar muito
Para alcançar qualquer ilha.
Com nosso barco sem quilha
Neste mar acidental,
No acidente entre o ocidente e o oriente.
Mas não há quem nos oriente
Nesse mapa emocional.
Será que vale a pena ser herói (nacional)?
 
TEMPO AO TEMPO
O que aqui se chama tempo
É um espaço reservado
Às maresias.
(Um trabalho feito pelo avesso)
--O inverso do verso:
O medo das coisas simples.
Vivemos de matéria
De memória vaga,
Sombras espalhadas
Nos cenários.
A vida vivida no viveiro
Antigo: o cheiro das praias
Distantes.
O que aqui se chama tempo
É um crescimento sem controle
Pensamentos, rastros, retratos,
Flutuam num cáis parado
Onde não se registram os dias.
O que aqui se chama tempo,
É um exercício de tato.
Um trabalho de cerzir a vida,
De colocar o vazio dentro
Do oco, de fazer o nada
Cercado:
Espaço domado.

LAPIDÁRIO DE MARÍLIA
 (lira reinventada)
Lira I
 
mar
Ilhada em mim
Que me desprendo menos terra
Mais maré montante
Monte pleno
Antiarenito contraído
Em minhas dunas contráridas
Salágua:
Meno sal, me represo líquido.

Marvilha, gratistela que alvora luz

Tempo contido, marca inexpressa
Fechada face: meu espelho irreflexo,
Desvendável apenas em meus retratos.
-no entanto, sou voz plena, antessoada:
Profecia do eco
(som que não propaga, mas inventa e elege)

Marvilha, gratistela que alvora luz

Orar o ouro,
D’ouro, menos que brilho,
Mais pela febre,
Pela febriluz.
-marília é luz contida,
Pós reflexa.

Marvilha, gratistela que alvora luz

Sol luz olhos,
Os teus de visionária,
Do limite amplo, plano pleno de tua face
Que d(t)esliza à linha d’água,
À linha longa, à linha curva,à linha langue...
Linhas que se alinham em teus cabelos
E remontam teu corpo em/balsa/amado.
Mas te afastas, pastora que se muralha
Tês oiro escondido(a) e procurado(a).

Marvilha, gratistela que alvora luz.

Que o rio retido retarde a safra
E não amadureça estas sementes.
As peste lenta, lentamente abaterá o gado
-mas tanto guarda a alvorada
Alvoramada, Marília bela,
Que ao teu riso renascerá o dia

Marvilha, gratistela que alvora luz

Antipássaro,
Observo teu pouso entre flores,
Reconheço tuas vestes e te aceno...
Mas, restas ao longe das esplanadas
E apenas insinuas suas formas em luz.
Cego, me basto no tato de teu nome.

Marvilha, gratiestela que alvora luz

Giram tuas consteladas letras
E já se grifam lápides.
-entre a campa e os ciprestes,
Nos enterremos mortos.
-as mesmas palavras que nos circundam
Serão exemplos.

Lira IV
Marília é vedada
Transplende apenas nos olhos
Acusa no que reflete
Transparente
do seu sou
mente no fundo

Marília, escuta
--escutas?

Nem descoberta, nem achada a tua face
Visível
Como a tua projeção sobre meu rosto
Face (a) em mim
Lábio precursora
Chegas chaga em mim aberta
E em mim
Mas funda e maior

Marília escuta
-escutas?

Meandro pastos por teus rebanhos
Amplos braços meus vargem prados
Fonte
Melhor relva
Se vinhas,
Em que vinhas te alia?
Aves te avistaram plumba
Planipluma
Ante
Ao resumo dos pássaros
Antevôo e pouso

Marília escuta
-escutas?

Passos seguidos de tuas
Coisas despidas a tantos olhos
Te diviso entre as copas do campo
Rearquiteta face reinventada
Guaradamada em mim
Defesa
Marília escuta
-escutas?
Transbordamento pleno
Refletido
Face miha em tua face
Pelos planos
Amploviários teus
E à tua semelhança
Laura, Marília,
Quem, face qual
Fotogravada
Fotograve
Ida e vinda
Em todos os rostos

Marília escuta
-escutas?

Movida Marília
Ternamente, estandarte alto
Penhor de meu tacto
Fusão dos corpos
Fuso primeiro
Eterno ressoante
Reencontro(te)(me)

Marília escuta
-escutas?

Tua voz transfigura
Eco proferido antes
Teu rosto é tantos
E sempre estás e nunca vens
Marílias, estás?
Mutável sopro
Que grifa as lápides
O que fazer destes ditos
Sons e semi-sons de tuas falas
Se tuas palavras não têm letras?
Profecia.

Marília escuta
-escutas?

Mar
E ilha móvel que busco
Tua face se consome longe
Istmo interminável
Não te alcanço
Não vejo:
Creio e guardo.

Lira VI
Oh! A vária estrela.
Que diversos.
Maralta vela volante
Ante (ant)és
Ave ferida a pleno vôo
Antipássaro
O espaço à dança de um compasso
A dança do esquecer-se no papel
A descoberta
De como fomos ao dia
-mas,
Como hei de,
Se Marília é mais
E se há mais ainda?

Lira 7
Marília não tem retratos
Reflete
Ou retrata-se
Retrato que reflete
 aos poucos
Nestes líquidos
Qualquer pergunta
Qualquer movimento
Romperia
Limpidez e claridade.
 
PARA O POETA LUIZ CARLOS MATTOS
                                       (poema de Rubens Jardim)
Estou aqui em tua casa
como se estivesse diante de um espelho.
Não penso.
Não peso.
Não peço.
Apareço e desapareço
como simples reflexo
imagem
que o tempo não devolve
e poderá estar
gravada
--perdida ou registrada--
em corações
olhos
e álbuns que desconheço.

É noite na tua casa
e eu procuro em gavetas
o bairro que se foi,
a praia
que desapareceu,
a alma
que está mais sozinha,
e até o lampião que ficou aceso
e ainda ilumina
este momento
de inexistência da casa
de praia do vô Bento.

Solemar, você sabe,
não é uma varanda aberta
aos horizontes do mar.
Também não é uma rede rasgada
nem o remo estilhaçado.
Solemar é um queixume de sal
nas ondas, um uivo de bóias
trazendo nossos medos
ao alcance de nós mesmos.

Solemar é mais ainda: um mar torto,
um viés de enxergar sempre
e de não chegar nunca.


Mas que infância não foi assim?

Todos nós não nascemos
para os heróicos brados retumbantes?
Não fomos feitos para avançar
por um itinerário qualquer,
a qualquer hora e em qualquer direção?

Ou será que alguns de nós
--os atrasados e os desajeitados--
escolheram o caminho das pedras
só para provar que o caminho é infindo
e que chegar é adiar uma despedida.  

Não, não quero repetir a velha cantilena
que nem mesmo habitou a velha Helena.
Mando Homero às favas.
Mas onde está a minha família
que ficou minguada
e as casas que se precipitaram
em precipícios
preservando cristaleiras conversas de cozinha
cômodos escuros paredes velhas
frestas no rodapé
e baratas que nos causavam medo.

Lembrar, é claro, é função humana.
Mas nós
que éramos mais frágeis que a pena
na penumbra
já insistíamos em guardar:
papagaios de papel,
caramujos que traziam os barulhos do mar,
meninas que despertavam as comunhões mais plenas
e mais impossíveis,
e emoções que ficaram presas
em conchas, em barulhos de gaveta, em revistas
que já se foram, em ruas que desapareceram e nunca retornaram.

Tudo isso que estava ali, à nossa frente,
era apenas um horizonte? Uma possibilidade?
E o que fizemos com essas pertencenças,
com essa sensação de estar presente no móvel profundo
das águas e das areias?
No fundo do poço
nós cavávamos a nossa sede.
Algum dia, dos lábios impronunciáveis, surgiria a palavra
companheira,
imã e irmã,
talvez romã rebentando nossa ancestralidade
em um muro.

E tudo isso não dividia nada. Nem separava nosso destino
do destino daqueles que significavam tudo pra nós.
Não demos murro em ponta de faca. Antes atávamos a vida com barbante.
Mas, de algum jeito, sabíamos:  
nossa boca encontraria a boca imaginada, nosso corpo ganharia a dimensão do outro corpo.
Mas ignorávamos as resultantes:
as águas misturando-se as águas,
as ondas nascendo das ondas,
e aquela areia, apagando pra sempre,
o desenho de nossos pés.

Rilke diria: tudo isso era missão.
Acaso a cumpriste?

 

Publicado por Rubens Jardim em 16/04/2010 às 13h43

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