Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
03/11/2010 14h47
ele começou a escrever na adolescência e foi em frente. e virou bom poeta. e logo depois pintor sensível e competente
EDUARDO ALVES DA COSTA E SUA POÉTICA INCISIVA E DELICADA
Conheci Eduardo Alves da Costa, poeta competente e já meio senhor do seu ofício,
na efervescente vida cultural brasileira dos anos 60. Naquela época, o mundo inteiro estava passando por transformações radicais: Gagárin dizia que a terra era azul, a capital do Brasil mudou para Brasília, Kennedy foi assassinado, construiu-se o Muro de Berlim, os Beatles explodiram nas paradas de sucesso e o golpe militar de 64 arrancou João Goulart da presidência.
Como disse Lúcia Helena Gama, os anos 60 foram a década da radicalização e das polaridades entre o imperialismo ianque e a produção nacional, a cultura americana e a brasileira, a reacionária e a progressista, a popular e a de elite. Vivíamos a criticar o mercado e a produção cultural que a ele se destinava, mas amávamos os Beatles e os Rolling Stones. Sem deixar de fora, é claro, Vandré, Chico, Bethânia, Elis, Gil, Caetano, Mutantes.
Pois bem: no meio conturbado de tudo isso, uma porção de poetas jovens ocupavam os novos espaços da cidade –Redondo, Ferros, Juão Sebastião Bar, Galeria Metrópole, Praça Roosevelt, boates da Vila Buarque -- abrindo seu caminho a machadadas. Eduardo Alves da Costa, era um deles. Organizou Noites de Poesia no Teatro de Arena e teve poemas incluídos na célebre Antologia dos Novíssimos, publicada por Massao Ohno em 1962. Depois disso, participou de diversas leituras públicas, inclusive do 1º Comício Poético da Praça da Sé, ao lado de Álvaro Alves de Faria, Carlos Soulié do Amaral, Rubens Jardim, Clarice Jacy e outros(1965)
A partir daí o poeta Eduardo Aves da Costa desapareceu, embora tivesse continuado a publicar contos, A Sala do Jogo, novela Fátima e o Velho, o romance Chongas e a premiada peça As Campainhas. Seu mais conhecido livro de poesia, No Caminho, com Maiacovski, só foi publicado em 1985. E o poema que dá título ao livro—escrito nos anos 60 e lido em diversos locais naquela época -- tornou-se tão conhecido e popular que sua autoria acabou sendo atribuída ao poeta russo Maiacovski.
Um equívoco que durou muitos anos –quase uns quarenta --e que nem a publicação do livro acabou corrigindo. E nem a invejável exposição do poema em uma novela das oito, Mulheres Apaixonadas, solucionou. Hoje mesmo recebi, de uma amiga, uma mensagem muito bem produzida, em PPS, em que o poema do Eduardo virou poema do Maiacovski. Se não me engano, esse mesmo poema já circulou pela internet como sendo de autoria de outro escritor célebre: o alemão Bertold Brecht.
Mas o próprio Eduardo já esclareceu esse equívoco, reportando às suas origens. Tudo começou a acontecer quando o psicanalista, jornalista e dramaturgo Roberto Freire, incluiu em seu livro Viva Eu, Viva Tu, Viva o Rabo do Tatu  trecho do poema como sendo de autoria do poeta russo –e tradução de Eduardo Alves da Costa.
 
NO CAMINHO, COM MAIAKÓVSKI
 
Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakósvki.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.
 
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho e nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
 
Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz:
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.
 
Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.
 
Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas no tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares,
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.
 
E por temor eu me calo.
Por temor, aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!
Banana Split
 

 
Aos que devoram o mundo
tranquilos, como se comessem
uma banana split;
aos que usam as assembléias
como balcão de negócios,
na esperança de vender
seu estoque de bombas;
aos banqueiros internacionais,
pressurosos em atender
os mendigos de Estado,
em troca de pequenas concessões;
aos que plantam suas máquinas
em terras estrangeiras,
para espremer os frutos,
o solo e as gentes;
àqueles que falam doce
e mandam seus missionários
catequizar os gentios
com hinos de dúbia letra;
aos amantes da ciência,
magos e feiticeiros,
hábeis em curar moléstias
geradas por eles mesmos;
aos que levam nosso ferro
e areias monazíticas
e nos devolvem em troca
o saldo de suas festas;
aos que matam nossa fome
com sacas de feijão podre
e nos afogam a sede
num mar de refrigerantes;
aos que abrem suas asas
sobre nossas cabeças ocas
e nos fazem aliados
contra o inimigo deles;
enfim, a todos aqueles
que usando de artimanhas
suas artes nos ensinam,
nossa gratidão eterna.
E a promessa de que um dia,
tão logo estejamos prontos,
restituiremos em dobro.
Poema da Cartomante

Estendo minha mão
e a velha me fala
de um futuro tão remoto
que chego quase a descrer da Bomba.
Ah, deliciosa visão,
promessas de vida longa,
um lar feliz
e até mesmo um nome
para ser honrado.
Lê, mulher; procura
em minha mão
a certeza que me falta.
Aprendeste a profissão
nos tempos de paz
e o futuro que me dás
é o dos meus avós.
Falas-me de um lar
e eu procuro concebê-lo
ao abrigo da guerra que virá
e que eu vejo crescer nas declarações de paz.
E contudo eu gostaria
de que tuas profecias se cumprissem;
que estas coisas não fossem para mim,
mas pudessem acontecer
ao homem simples,
a esse que vai para a fábrica, de manhã,
e não sabe do mundo
para além do próprio quintal.
Segues com o dedo
a linha da vida
e vês tão claro
que por um instante me aborreço
e penso em me levantar.
Mas não quero te ferir.
Afagas minha mão
num gesto maternal
e me devolves ao mundo,
na certeza de que estou mais forte.
Não, eu não te direi nenhuma destas coisas,
porque lá fora os teus netos brincam
e a tarde, vista de tua janela,
promete não ser a última,
não pode ser a última.
E porque teus olhos
me pedem que acredite.


Publicado por Rubens Jardim em 03/11/2010 às 14h47

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