Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
25/11/2011 14h01
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (12)

Apesar das grandes dificuldades que cercaram a vida destas duas poetas libertárias, Jacinta Passos e Orides Fontela não cederam um milímetro em suas convicções. Ambas enfrentaram, em circunstâncias e tempos diversos, preconceitos e estigmas. E seus embates foram duríssimos.Só que as duas fizeram poesia de alta voltagem, sem frouxidão e derramamentos emocionais. E mereceram a atenção e o aplauso de nomes como Antonio Cândido, Sergio Milliet, José Mindlin e Maria Helena Chauí. Infelizmente, as duas morreram pobres e incompreendidas --em sanatórios. E só recentemente suas obras voltaram a ser publicadas. Presto aqui uma homenagem a elas, alterando o parâmetro da série de 4 poetas por cada postagem. O talento de Jacinta e Orides merece esta modificação --e este destaque. E eu quero contribuir com o resgate dessa poesia alheia a correntes e modismos.

JACINTA PASSOS(1914-1973) – poeta baiana, professora, jornalista, militante política e feminista, nasceu em família rural abastada da região de Cruz das Almas, no Recôncavo Baiano. Foi católica fervorosa e se transformou em comunista ardorosa, nas palavras da filha, Janaína Amado. Publicou 4 livros: Nossos Poemas(1941), Canção da partida(1945), Poemas políticos (1951) e A Coluna (1958),longo poema sobre a Coluna Prestes, empreendida na década de 1920,que buscava mudanças políticas para o Brasil.
Todos os livros de Jacinta tiveram edições pequenas, e estão esgotados há muito tempo. Canção de Partida, por exemplo, teve tiragem de apenas 200 exemplares, numerados e assinados pela autora e ilustrados por Lasar Segall. E embora tenha despertado interesse e atenção de nomes tão importantes como Mário de Andrade, Antonio Candido,Sérgio Milliet e Roger Bastide, a poesia vigorosa e libertária dessa poeta acabou caindo no esquecimento. Eu mesmo, que circulo nesse universo da poesia há mais de 40 anos, só muito recentemente tive acesso ao seu trabalho --e à sua trajetória marcada por tantos conflitos e dificuldades.
Mulher excepcional, no sentido mais literal da palavra, Jacinta Passos abandonou a formação religiosa, comum na época, e passou a lutar, a partir do início da Segunda Guerra Mundial pela paz mundial, contra o fascismo, a opressão das mulheres e das minorias exploradas--conforme destaca Eliane F.C.Lima, em seu blogue.
Mas bem antes disso, quando tinha uns 18 anos, o catolicismo convencional de Jacinta já começou a migrar para o catolicismo social. Aquele que provocou e ainda provoca polêmicas e dissenções. Exemplar é o caso da Teologia da Libertação, tão influente na América Latina,e que acabou levando um de seus mais renomados integrantes, Frei Leonardo Boff, a ser julgado pelos tribunais do Vaticano.

O viés desse catolicismo social,formulado pela encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, procurou oxigenar e aproximar a igreja católica de uma nova realidade, desenvolvendo noções como a de bem comum (os bens comuns seriam de responsabilidade de toda a sociedade) e a de destinação universal dos bens (os bens deveriam ser divididos com igualdade entre os homens)
Segundo sua filha, Janaína Amado, responsável pela publicação do livro JacintaPassos, Coração Militante (2010) sua mãe vivenciou paixões intensas: por homens que a amaram, pela filha da qual foi afastada e pelo partidão onde permaneceu 30 anos na experiência clandestina. O calvário de Jacinta Passos começou em 1951, quando ela passou a sofrer crises nervosas e delírios persecutórios. Diagnosticada como esquizofrenica , vivenciou a violência extrema de diversos internamentos em sanatórios, tratada a eletrochoques, injeções de insulina e isolamento severo.
Mas jamais deixou de escrever. Em Aracaju, por volta de 1962, foi morar sozinha em um povoado de pescadores. Vivia muito pobremente, em um barraco de madeira, mas possuía uma máquina de escrever, onde, à noite, datilografava poemas e textos políticos, que distribuía pelas ruas durante o dia.”
Janaína conta, ainda, que mesmo após o golpe militar de 1964, Jacinta Passos não abandonou a intensa  militância junto a pescadores, estudantes e trabalhadores.”Em 1965 foi detida quando pichava muros da cidade com palavras de ordem contrárias à ditadura. Foi recolhida ao 28º BC de Aracaju e depois transferida para a Casa de Saúde Santa Maria, onde permaneceu até morrer, aos 57 anos, no dia 28 de fevereiro de 1973.”

O livro Jacinta Passos, Coração militante, lançamento conjunto das Editoras Corrupio e Edufba em junho de 2010, reúne todo o material encontrado a respeito de Jacinta Passos. Contém ainda poemas esparsos, originalmente publicados em jornais e revistas, jamais reunidos em livro.E uma bela biografia que mostra a trajetória singular da poeta, bem como sua fidelidade às idéias e valores que a levaram a chocar-se contra tudo e contra todos— na contramão do tempo.

Canção do amor livre

Se me quiseres amar
não despe somente a roupa.

Eu digo: também a crosta
feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti,
pelo sangue recebida
tecida
de medo e ganância má.
Ar de pântano diário
nos pulmões.
Raiz de gestos legais
e limbo do homem só
numa ilha.

Eu digo: também a crosta
essa que a classe gerou
vil, tirânica, escamenta.

Se me quiseres amar.

Agora teu corpo é fruto.
Peixe e pássaro, cabelos
de fogo e cobre. Madeira
e água deslizante, fuga
ai rija
cintura de potro bravo.
Teu corpo.

Relâmpago depois repouso
sem memória, noturno.

Cantigas das mães

(para minha mãe)

Fruto quando amadurece
cai das árvores no chão,
e filho depois que cresce
não é mais da gente, não.
Eu tive cinco filhinhos
e hoje sozinha estou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.

Tão lindos, tão pequeninos,
como cresceram depressa,
antes ficassem meninos
os filhos do sangue meu,
que meu ventre concebeu,
que meu leite alimentou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.

Muitas vidas a mãe vive.
Os cinco filhos que tive
por cinco multiplicaram
minha dor, minha alegria.
Viver de novo eu queria
pois já hoje mãe não sou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.

Foram viver seus destinos,
sempre, sempre foi assim.
Filhos juntinhos de mim,
Berço, riso, coisas puras,
briga, estudos, travessuras,
tudo isso já passou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.

Diálogo na sombra

– Que dissestes, meu bem?

Esse gosto.
Donde será que ele vem?

Corpo mortal.
Águas marinhas.

Virá da morte ou do sal?
Esses dois que moram no fundo e no fim.

– De quem falas amor, do mar ou de mim?

Canção atual

Plantei meus pés foi aqui
amor, neste chão.

Não quero a rosa do tempo
aberta
nem o cavalo de nuvem
não quero
as tranças de Julieta.

Este chão já comeu coisa
tanta que eu mesma nem sei,
bicho
pedra
lixo
lume
muita cabeça de rei.

Muita cidade madura
e muito livro da lei.

Quanto deus caiu do céu
tanto riso neste chão,
fala de servo calado
pisado
soluço de multidão.

Coisas de nome trocado
– fome e guerra, amor e medo –

Tanta dor de solidão.

Muito segredo guardado
aqui dentro deste chão.

Coisa até que ninguém viu
ai! tanta ruminação
quanto sangue derramado
vai crescendo deste chão.

Não quero a sina de Deus
nem a que trago na mão.

Plantei meus pés foi aqui
amor, neste chão.

1935

Tenso como rede de nervos
pressentindo ah! novembro
de esperança e precipício.

Fruto peco.

Novembro de sangue e de heróis.

Grito de assombro morto na garganta,
soluço seco dor sem nome. Ferido.
De morte ferido. Como um animal ferido. Luta
de entranhas e dentes. Natal.
Sangue. Praia Vermelha.

Sangue.
Sangue. É quase um fio
escorrendo
sangrento
tenaz
por dentro dos cárceres,
nas ilhas
e nos corações que a esperança guardaram.

Eu serei Poesia

A poesia está em mim mesma e para além de mim mesma.
Quando eu não for mais um indivíduo,
eu serei poesia
Quando nada mais existir ente mim e todos os seres,
os seres mais humildes do universo,
eu serei poesia.
Meu nome não importa.
Eu não serei eu, eu serei nós,
serei poesia permanente,
poesia sem fronteiras.

 

ORIDES FONTELA (1940-1998) poeta paulista de São João da Boa Vista, interior de São Paulo. De família muito pobre, seu pai era operário analfabeto, viveu sempre em dificuldades financeiras. Aos 27 anos, depois de cursar a escola normal na terra natal, veio morar em São Paulo e realizar dois sonhos: entrar na USP e publicar um livro.
Fez filosofia, exerceu o magistério e trabalhou como bibliotecária na rede estadual de ensino.
Desde o primeiro livro Transposição(1969) o discurso apurado de Orides Fontela está marcado pela contenção e pela economia verbal. Aliás, essa característica foi destacada por todos os críticos que se ocuparam de seus livros. Alguns apontaram, nessa marca personalíssima, reverberações da poesia descarnada de João Cabral. Outros, falaram da impessoalidade, da busca pela palavra exata e o culto a um silêncio esfíngico.

O certo mesmo é que seus poemas são despidos de tudo o que pode ser considerado acessório e dispensável em poesia. A produção de Orides encontra-se publicada em seis obras, todas de poesia: Transposição (1969), Helianto (1973), Alba (1983), Rosácea (1986), Trevo (1969-1988, reunião de todas as outras obras) e Teia (1996). A única obra em prosa foi Almirantado, publicada no número 4 do caderno Almanaque de literatura e ensaio (1977).

Segundo o poeta Donizete Galvão “ela reconhecia que era áspera, sem travas na língua e que se indispunha com as pessoas.” E a comprovação desse seu temperamento explosivo são essas palavras pinçadas pela poeta Nydia Bonetti:“Reclamam, porque eu não falo de amor. Mas então não leram Homero... Eu quis chegar no miolo das coisas. Já fiz duas leituras para auditório de jovens e eles gostaram muito. Isso me deixa reconfortada. Mas, infelizmente, nossos especialistas ainda têm uma visão muito olímpica da poesia. (...) Mas é a velha história: é melhor que falem mal, mas falem de mim. Eu preciso de dinheiro para viver. Minha vida é um retrato da vida dos aposentados do Brasil. E a vida dos poetas no País. Eu queria ser mais enxuta, queria escrever poemas exemplares à moda de Brecht. Sei que não agrada, porque a moda hoje é o barroquismo. A moda é escrever como o Alexei Bueno. A moda é ser difícil. É um fenômeno sociológico e não adianta discutir com os fatos da sociologia. Não quero ir contra ninguém, só quero escrever meus poemas. (...) Eu sou pequena, pobre mulher que escreve uma poesia boa, mas, coitada, não é do meio. Não tenho família, não tenho bens, não freqüento os lugares chiques. É como se eu estivesse invadindo o Olimpo.”

Tão verdadeira e por isso tão poética, Orides Fontela recebeu o prêmio Jabuti de Poesia, em 1983, com Alba , e o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1996, com Teia . Sempre com dificuldades financeiras, no final da vida, acabou sendo despejada de seu apartamento no centro da cidade e foi viver com sua amiga Gerda na Casa do Estudante, um velho prédio na Avenida São João. Era uma pessoa irritadiça e muitas vezes se meteu em encrencas, brigando com seus melhores amigos. Morreu em Campos de Jordão, aos 58 anos, no dia 4 de novembro de 1998, de insuficiência cardiopulmonar, na Fundação Sanatório São Paulo.

Em 2006, parte da obra de Orides --"Transposição", "Helianto, "Alba", "Rosácea" e "Teia"-- foi compilada em um exemplar pela Cosac Naify, POESIA REUNIDA com bibliografia ampla e atualizada.


o espelho dissolve
o tempo

o espelho aprofunda
o enigma

o espelho devora
a face

 

AXIOMA

Sempre é melhor
saber
     que não saber.

     Sempre é melhor
     sofrer
     que não sofrer

     Sempre é melhor
     desfazer
     que tecer

 

FALA

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade)

TEIA

A teia, não
mágica
mas arma, armadilha

a teia, não
morta
mas sensitiva, vivente

a teia, não
arte
mas trabalho, tensa

a teia, não
virgem
mas intensamente
prenhe:

no
centro
a aranha espera.

 

AS SEREIAS

Atraídas e traídas

atraímos e traímos

 

Nossa tarefa: fecundar

                            atraindo

nossa tarefa: ultrapassar

                            traindo

o acontecer puro

que nos vive

 

Nosso crime: a palavra.

Nossa função: seduzir mundos.

 

Deixando a água original

cantamos

sufocando o espelho

do silêncio

 

DESTRUIÇÃO

A coisa contra a coisa:

a inútil crueldade

da análise. O cruel

saber que despedaça

o ser sabido.

 

A vida contra a coisa:

a violentação

da forma, recriando-a

em sínteses humanas

sábias e inúteis.

 

A vida contra a vida:

a estéril crueldade

da luz que se consome

desintegrando a essência

inutilmente.

 


Publicado por Rubens Jardim em 25/11/2011 às 14h01
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