Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
22/02/2016 01h02
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (72ª POSTAGEM)

ELIZABETH VEIGA(1941) poeta carioca, estreou em livro em 1972, com o volume Gosto de fábula. Vinte anos depois veio A paixão em claro e dez anos mais para a publicação de Sonata para Pandemônio(2002).Em 2007, A estalagem do som.

PERDA

Da primeira vez que me quebraram

toda

dobrei os joelhos,

caí sem joelhos,

me dobrei toda sobre

o vazio dos braços.

Os ossos tiritavam,

a cabeça estalava

um sino:

toda um estaleiro

sem navios,

só pavios de viagem,

toda uma estalagem

bêbada de sombras

e sinas,

não sabia mais

quantas primaveras

fazem um cisne,

não sabia

beber a não ser

com as mãos em cuia,

eu era um pires

com a cara redonda

que os gatos lamberam

e fugiram,

um piano com febre

em desarticulação nervosa,

uma pátina derretida,

uma patavina

atarantada

com os caracóis da poeira

sumida no horizonte.

 

SONATA ACHINCALHADA

1 (coisas de superegos)

 Canonizaram o esqueleto da burra.

Entronizaram-lhe os quartos traseiros

num andor.

Suas mandíbulas

atarracadas

silvam bênçãos.

Condenaram-na ao inferno.

 

2 (esquisitices de ego)

 Na algibeira da muleta

carrego

a panela de pressão social

fervendo,

e uma xícara de chacota

sem açúcar.

E resfolego, mula,

sem pretender o Olimpo

das belas letras,

vou trôpega,

vou pelo avesso

empacada.

Quem quiser que funcione:

eu sou um parafuso a menos

da máquina do mundo.

 

CONTEMPLAÇÃO DA OVELHA

Tão de banda, comovia,

tão folclore de branco nos pêlos

era grisalha

nervosa, nas patadas de cabrito,

tosquia das nuvens do sonho,

tão sweater parecia vermelha

tão sweeter

de ternuras obsoletas,

negra

de pêsames e algias,

ovelha nas orelhas

abaixadas,

nos quadris redondos

e na postura

de galinha choca envergonhada,

derramada de lã,

enovelada debaixo dos cabelos,

era a ovelha de noiva

cerzindo meias e remendos,

tremida

nas lágrimas de um copo d´água.

 

O AMOR

O amor subverte

todos os espaços,

ocupa o relógio inteiro:

explode

as horas que não são suas.

O amor dissolve o diário,

calendário, lenda,

brinca do que não existe.

O amor rasga o fogo

com os dentes:

a surpresa ilumina.

 

HILDA MACHADO(1952-2007) poeta carioca, foi professora, estudiosa de cinema e cineasta premiada. Não publicou nenhum livro e foi descoberta pelo pessoal da revista Inimigo Rumor que publicou, em 2004, dois poemas de sua autoria. Mais adiante, em 2009, vieram à luz mais 9 poemas inéditos publicados pela Modo de Usar&Co.

 MISCASTING

               “So you think salvation lies in pretending?”

                                                                Paul Bowles

estou entregando o cargo

onde é que assino

retorno outros pertences

um pavilhão em ruínas

o glorioso crepúsculo na praia

e a personagem de mulher

mais Julieta que Justine

adeus ardor

adeus afrontas

estou entregando o cargo

onde é que assino

 

há 77 dias deixei na portaria

o remo de cativo nas galés de Argélia

uma garrafa de vodka vazia

cinco meses de luxúria

despido o luto

na esquina

um ovo

feliz ano novo

bem vindo outro

como é que abre esse champanhe

como se ri

 

mas o cavaleiro de espadas voltou a galope

armou a sua armadilha

cisco no olho da caolha

a sua vitória de Pirro

cidades fortificadas

mil torres

escaladas por memórias inimigas

eu, a amada

eu, a sábia

eu, a traída

 

agora finalmente estou renunciando ao pacto

rasgo o contrato

devolvo a fita

me vendeu gato por lebre

paródia por filme francês

a atriz coadjuvante é uma canastra

a cena da queda é o mesmo castelo de cartas

o herói chega dizendo ter perdido a chave

a barba de mais de três dias

 

vim devolver o homem

assino onde

o peito desse cavaleiro não é de aço

sua armadura é um galão de tinta inútil

similar paraguaio

fraco abusado

soufflé falhado e palavra fútil

 

seu peito de cavalheiro

é porta sem campainha

telefone que não responde

só tropeça em velhos recados

positivo

câmbio

não adianta insistir

onde não há ninguém em casa

 

os joelhos ainda esfolados

lambendo os dedos

procuro por compressas frias

oh céu brilhante do exílio

que terra

que tribo

produziu o teatrinho Troll colado à minha boca

onde é que fica essa tomada

onde desliga

 

CABO FRIO

Nuvens passageiras

miragens peregrinas enfunadas pelo Nordeste

queda de folhagem

muda retórica

 

O Sudoeste dá rédeas à repulsa

nuvens erráticas devoram rivais

Orfeu despedaçado por bacantes drapejadas de vapor

 

Em dia sem vento

a falta de engenho permite

purezas de sabão e macieiras em flor

talco no chão do banheiro

sorvete marca Aristófanes

 

Mas quase sempre ele pisa seus véus

 

Duas mãos de cinza desmaiado

sobre fundo esmaltado é perícia

renda

luxo magnífico e corrupto

realização elegante de algum mandarim

leque de plumas de avestruz tintas de rosa

levemente agitado diante da luz

 

O CINEASTA DO LEBLON

“Aquele que escavar em sua consciência

até a camada do ritmo e flutuar nela

não perderá o juízo.”

Nina Gagen-Torn

 

O brilho de laranja ao sol

amendoeira rubra e pavão

oculta sobressaltos faustianos

encenam-se dramas na alma

suadas peripécias

lágrimas

mímesis

em sítios escusos está a mocinha raptada por um turco

e a nudez do missionário espancado

folheia-se uma antologia de acidentes

títulos afundam

e no lodo

personagens sem nome

e escândalos de fancaria

 

O comércio incessante

distrai das caudalosas sociologias do fracasso

idades do ouro perdidas

terror espetacular

recorta o esforço de colosso trágico

alçar-se acima da imensa massa de vencidos

violinos pela indesejada que fatalmente alcança e ceifa

carnaval exterior que é dublagem

 

Nos domingos de lua cheia

um infante sôfrego obriga a minuciosos tratados

miuçalhas

monopólio

asperezas

contrabando

e então

razias de corsário

 

na lua nova cruzo a cidade pra beijar a sua boca

transpor morros e encontrar a elevação

tropeça-se em pétalas de rosas

em trufas

visitas ao paraíso

as quartas-feiras são turvas

e trazem as penas do inferno

telefonemas seus

telefonemas meus

telefonemas da outra

e a ex

compomos o obrigatório conflito

repetir com honestidade a velha trama

até que ao fim do primeiro bimestre

erra-se no açúcar

escorrega-se na farsa

e mudam-se todos para a novela das 7

 

Homem da lua

fantasia de rudes hormônios

o bicho se coça

fervor marcial e bico de passarinho

cavalo rampante que rasga com as patas convenções de estilo

atravessa pontes queimadas

alcançou o vale feroz

terremoto maior que o de Lisboa arrasa cidadelas

afrouxa parafusos

e do colchão abala a mola-mestra

 

ouviu, carro?

tribos bárbaras desabam sobre a minha Europa

 

ouviu, montanha?

mudaram os livros que eu agora levo pra cama

antigas lendas fabulosas

uma grosseira rapsódia

cinco escritos libertinos

eu bebo como num banquete em Siracusa

e gozo como as prostitutas de Corinto

palmeira, ouviu?

 

O NARIZ CONTRA A VIDRAÇA

como a paisagem era terrível

mandou se fechassem as janelas

o nariz contra a vidraça e o fla-flu comendo lá fora

genocídios, promessas, plenilúnios

O festim de Nabucodonosor, a vitória dos pó-de-arroz

as dores do pai e os gritos de amor

são agora aquarelas pitorescas

 

O nariz contra a vidraça

melhor ainda atrás da persiana

ela com seus preciosismos

unhas feitas entre desfiladeiros de livros

barricadas contra o sublime e o medo

 

Discreta voyeuse

o sofá combinando com o tom das exegeses

a polidez dos móveis, avencas, decassílabos, filmes russos

perífrases sobre paninhos de crochê

e em vez de carne poemas no congelador

 

Anônima, dizia sempre à manicure

e apesar das mãos que enrugam

as unhas bem curtas e o esmalte claro, por favor

 

Um dia, o leite derramado na cozinha, saiu

garras vermelhas, bateu à porta do vizinho

JULIANA KRAPP(1980) poeta carioca, é jornalista e  mestre em comunicação social pela UERJ. Participa do grupo CAC (Comunicação, Arte e Cidade).Inédita em livro, tem poemas publicados em revistas como Inimigo Rumor, Germina e Poesia Sempre.

A ESTRUTURA ÍNTIMA DAS HORAS

Acontece apenas no mar

de concreto protendido à beira

da estrada e apenas quando a estrada

tem algo de fogo

ensurdecedor:

 

um lagarto, osso

de candura, rompe

a respiração da tarde, penetra

em todas as substâncias — as rochosas

e as celestes, os líquidos escuros e

sua pantomima de espelhos

 

Enquanto tudo ao seu redor é ênfase

(profusão de tecidos

lancinantes),

o seu avesso

é puro vidro

ardoroso: quer partir

entreabrir-se em sulcos

lentos, desdobráveis

 

Você, ao volante, não percebe

mas isso tudo é como nós dois,

na Cinelândia, às cinco horas

de uma tarde de verão, com uma

caixa de alfajores e vontade de café, quando

há no ar algo de concha,

estiramento, zona cega: a experiência

do precipício

 

PUNÇÃO

campanários. isso sim é uma casa

não aqui

onde os objetos sequer conspiram

onde a pele não se reconhece pele

e não se engendra cápsula de outra cápsula

posse de um único mistério

com seu agravo inabalável. uma casa

 

requer formas como dormideiras

que se recolham à carícia quando todas as carícias

são íntimas é tão surrado reconhecer

nas paredes que a única propriedade possível

é a fuga e mais ainda o sono profundo e

que sobretudo os mais elaborados sinais de chuva

não passam de sentinelas

resfolegando seu passo de partida

 

esta casa

não é minha: não se alcança daqui o brejo

afetuoso ao fundo de todas as coisas

não se vê o fosso

translúcido extorquindo das frestas

as esquadrias

 

tampouco há cantigas

emudecedoras

quando as horas se constrangem ao toque

ou ao contato do antebraço

com o repuxo invisível do acrílico

 

nesta casa

(assim como em todas as outras)

só resiste a ânsia de um veneno

afogado

em seu desleixo por lãs e puxadores

um veneno tão debilitado e circunstante

inabitável

quanto a certeza de que há ainda

no mundo tanto tremor

por tão pouca terra

 

FALÁCIA

Você falou que gostava dos nomes que parecem interrompidos

Conrad, Murdoc

Eu disse sic. Não atenda, por favor.

O céu não entende de marte, mas você disse

e marte ficou estranha, um olhinho exasperado

enciclopédico

como o sexo que fizemos depois. De certa forma precoce,

ficou revoando no papel pardo da janela

até encontrar uma fissura — toda vidro, toda alhures

 

Você falou plâncton, lítio (rocha sedenta)

árduos assassinos de aluguel espreitando nas masmorras

e, num murmúrio: “treliças”

“orquídeas”

arrebite

para que se ache um ponto de fuga, um ósculo rude

boca vulva narinas — orifícios de luxo

espiando de soslaio fluxos

de palavras novas

e líquidos pela metade.

Você falou alcagüete

e adormeceu com a mão um pouco trêmula sobre a minha perna.

 

PRETEXTO

o olho da rua é seco, sarcástico

do mesmo gênero das abotoaduras

e toucadores

 

de tudo resta sempre o seu mistério virgem

a beleza de íris os ares encardidos a córnea

tal qual um diadema espavorido

sobre nossas cabeças

 

então ele cruzou a pista sem qualquer melancolia

e travou o zíper sobre a pele

POLLYANA QUINTELLA (1992 ) poeta carioca, é historiadora de arte e co-editora da revista Usina. Cursou a PPGArtes da UERJ e a  Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Trabalhou em diversos museus: Dom João VI, Museu de Arte e na Chácara do Céu.  Não tem nenhum livro publicado.

DEPOIS DE ARTAUD

“Detemos as palavras nos seus pequenos odores de trufa sem descer em seus ossários?” Artaud

 estou

numa tarde

muito quente

em que pessoas

tiram a pele de palavras

e expõem seus ossos

como coisas cruas

contorcendo-as

em carne viva

enquanto me

cumprimentam

(ao cumprimentar

escondem as palavras

debaixo da língua

e emitem sons

estranhos

códigos vazios

entre bomdias

e obrigados)

pra que serve essa coisa

de língua que falam

a dos bonsdias e obrigados

não conhecem

são eles que

são conhecidos pela língua

porque do bomdia

não sabem do d ou do dia

(então como explicar

essa substância venenosa

que vomitam todos os dias?)

e agora

assombrados por esta coisa

que os conhece

não querem línguas escavadas

não querem línguas cariadas

querem dentistas da língua

profissionais que lhes tapem

os buracos ambíguos

dos seus enunciados

de noite pesadelam

com línguas que perfuram

órgãos

e palavras que engasgam

para matar sensatos

e acordam comprometidos

a aprender latim

ou qualquer língua

sem nativos

e nunca mais usar

as aspas

na esperança de fundar

significados imobilizados

com seguros de vida

pensam estar livres da maldição

mas temem que o estupro

do corpo das palavras

traumatize seus sentidos

seus certificados

suas consoantes

e seus acentos

numa grande explosão

vulcânica e sanguinária

já não se entendem

os dentistas estão loucos

a lava das palavras

lambe chão

e sulca coisas

e derrete mundo

os dentistas estão loucos

correm para tratar dos dentes

por onde elas passam

antes que apodreçam

o espírito

 

2.

diante do espelho

finalmente a garota

era preciso isto: 

embaçar a retina 

desconhecer os poros usuais 

pela investigação da imagem 

irreconciliável

da máquina corpo os encaixes falhos 

(os deslizes da engrenagem 

      os lapsos venosos)

um medo do mecanismo que sou 

—— o que é isto —— 

que enguiça no instante imponderável 

que enferruja e destroça os hábitos 

e um dia escangalha as funções 

sem mais nem menos 

assim 

pelas rédeas da contingência

eu que conheço pouco 

eu que no espelho fico 

até estranhar tudo 

longos e largos minutos 

pergunto ao relento 

o que faço com isto

 

4.

encontrava-me baldia

terra salgada de fronteiras

estéreis

buscava em par de olhos

os sonhos desabrigados

a pele vestida de miudezas frescas

nua do profundo

e de repente

o garoto rondava

meus cantos ermos 

minhas quinas pontudíssimas

minha janela dura defeituosa

sem que eu pudesse casar as mãos

nas suas mechas negras 

violentas de vida

estive então a cuspir tudo

a enquadrar o mundo

e arredondar as ruas

estive a dançar nas bordas

do risco

pra fecundar meu cultivo

de ramagens inexplicáveis

e é a entrega uma selva que sacode o horizonte.

 

5.

dois corpos num outono movediço.

(arranha na canela um vento dos penhascos sólidos, 

e marrons das folhas secas desidratadas)

preveem juntos uma vida de estações 

de azuis e amarelos 

invernos alérgicos

primaveras claras

verões alquímicos

vislumbram os ciclos coerentes

dos astros que não veem 

e resistem 

às catástrofes que varrem os

homens-cidade 

 


Publicado por Rubens Jardim em 22/02/2016 às 01h02

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