Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
02/06/2016 23h24
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (76ª POSTAGEM)

ELIANE ACCIOLY (1941) poeta mineira, é artista plástica, psicanalista, mestre em psicologia clínica, doutora em comunicação e semiótica, pela PUC de São Paulo. Publica em revistas científicas e tem poemas, artigos e livros traduzidos ao espanhol, francês e inglês.

A SURPRESA

O gato-maravilha que em mim morreu

retorna às vezes, cara redonda e invisível

 

Sombra errante corre

a saudade de bandos vadios

e arrepia as ruas de meu corpo

 

Lábio de lua crescente

fixo só na aparência

ri de mim, Alice,

prisioneira dos contrários,

o país dos espelhos

onde me extravio

 

na aprendizagem banal e mágica

de ser humana

QUARTETO

quatro

ouvindo violino

 

solo

 

só quatro

chorando na platéia

 

c(h)oro

O MENINO E O MEDO

                                   para Gianluca

um mosquito entra em casa

um avião invade o quarto

um helicóptero pousa no peito

 

entre pêlos e arrepio

o grito morre

 

na hora da guerra

mãe não socorre

MISTÉRIOS DE ACALENTAR MINHA MÃE MARIINHA

- Senhora dona Sancha

coberta de ouro e prata

na infância da língua

eras uma rainha

 

-Que anjos me rodam?

 

Ando velha e medrosa

não mais toco o piano

sinfonias não componho

 

- Senhora dona Sancha,

 

silhuetas, sombras

vestidas de branco

guardiões de vossos sonhos,

dispensamos ouro e prata

mal nunca vos faremos

 

- Estou velha

bem velhinha

tenho medo de morrer

 

- Medo? Pois pois,

por que medo?

por que medo?

 

Se no vosso coração

canta uma menina

com quem brincamos de roda?

 

Dona Sancha

nossa senhora,

vos espantastes a morte

como se espanta galinhas,

shô morte, shô

 

- É verdade, é verdade,

shô morte, shô

 

Para os prados partirei

cavalgando meu cavalo

Sobre a cama da fazenda

me aguarda o vestido

feito na minha medida

 

Anjos meus por onde andais?

Senti algum calafrio

 

- Sombras vestidas de branco

somos a infância da língua

somos vossos guardiões

Vosso medo espantamos

com histórias que contamos

 

- Anjos, brancas silhuetas

segurem a minha mão

e dormirei sossegada

para acordar na fazenda

onde me aguarda azul

o vestido, nos braços

de meu namorado

 

Segurem a minha mão

como minha mãe segurava

quando eu ia ao dentista

 

Shô, morte shô

montada no meu cavalo

espanto muitas galinhas

DEISE ASSUMPÇÃO (1946) poeta paulista, nasceu em Pirassununga e vive em Maua´, ABC paulista, desde 1968. Formada em letras, especialização em literatura brasileira, tem uma longa atuação no magistério. Participa de congressos e outros eventos da área, tendo vários trabalhos publicados.Alguns de seus poemas constam de antologias, revistas e sites literários. Cofre é sua primeira publicação em livro.

PURGATÓRIO

a mãe gemendo de dor

(sem remédio)

o irmão sem dentes e emprego

(e bêbado)

pai e avô caducando em asilo

(em cheiro de urina)

sobrinhos e filhos e netos

(bisnetos)

alongando a caravana

(em deserto)

 

eu parede de palavras

a repercutir seus ais

(só em versos)

 

se eu morrer só poeta

ouvirei em juízo:

tive fome e me deste poesia

HERANÇA MATERNA

Agora que já te foste,

fiquei a reaprender

a lição do berço de ser poeta:

 

Se tu vinhas

e eu te via,

então tu eras.

Mas tu ias

e te acabavas.

 

Teu vaivém

me deu a luz

de saber-te ser

quando não te via,

de imaginar

que tudo é.

 

Quero saber que inda tu és

e assim crerei

que também sou.

ASSALTO

No cristal impermeável

do espelho do meu quarto,

olhei brincos e batom,

tom de vestido e sapatos,

cheiro de gotas de almíscar,

dobras da seda da gola.

 

No espelho transparente

do vidro do meu carro,

colou-se um prato de fome,

sobrenome de menino

registrado em cartório

de latrocínio de nomes,

em expediente encerrado.

 

E eu me vi,

e tive medo.

CONTEMPORIZANDO

O tempo me vestia com mangas compridas

que engalfinhavam as mãos

e pernas largas.

E eu ficava esperando demorada

o passeio de bicicleta

e o macarrão de domingo.

E eu pensava que podia guardar

no bolso do pijama de flanela

o pequeno fósforo de artifício já aceso.

 

O tempo me despe das leituras que nunca fiz,

dos poemas que não escrevi,

dos orgasmos que adiei.

Esconde-se em limpar armários

e arrancar ervas daninhas

numa indolência que leva a semana de roldão

à prestação.

 

O pêndulo é o mesmo da casa antiga

e eu já nem sei se na eternidade

terei de volta o amor,

ou o que fugiu nos amando,

ou o que ficou nos perdendo.

 

JUÇARA VALVERDE (1948) poeta gaúcha, é médica e dedica-se também às artes plásticas, precisamente escultura e pintura. Já coordenou semana de artes em hospitais e concursos de poesia. Publicou o livro Espírito do Tempo (2007) e participou de várias antologias e leituras públicas de poesia.

MULHER EM TEMPO INTEGRAL

Amor sem amizade é palavra vazia

esquece a alegria dos dias azuis

despido de porquês e senões.

 

Com afeto e ternura viaja no tempo

supera culpas e desculpas

aprecia um dia de cada vez.

 

Abusa do prazer do agora

esquecendo atas, atos e ateus.

É livre, leve e solto.

 

Vê o desfile da  vida

no choramingo de neto, na risada de filha

nas lembranças do ontem.

 

Percebe o encontro do perdão

os abraços da esperança

o calor de um dia de sol.

 

E na conquista diária, de quando em vez

abre o livro

vira a página.

 

E quando sopra o vento das possibilidades

torna a mulher plena e completa.

VÉUS

Vestida de véus em seu devaneio

ora cigana ou cavaleira

em busca de desejos.

A procura de cama ou feno,

por mais uma noite,

por mais um amor.

Repleta de ardor,

satisfeita,

vai de partida.

Despedida cheia de vida

Despida.

CERTEZAS

Serei

água que banha o solo e canta na cascata,

chuva forte que lava e alimenta as folhagens,

por do sol que encanta o fim do dia.

Talvez

coração que se enternece com risada de criança,

lágrima que escorre pela desigualdade,

cultura que divido com todos.               

Quiça

cheiro de terra molhada do início da chuva,

som de vassoura varrendo a calçada.

natureza nutrida de sonhos.

Quem sabe

onça que luta por seus filhotes,

mulher alimentada pela esperança,

poesia que transborda a alma.

 

Sou,

certeza de resistência.

Desistência?

Jamais.

SENSAÇÕES

Nos porões da esperança

brinco como criança

na busca de meus tesouros;

           memórias esquecidas.

 

Entre sombras e baús,

meus fantasmas imaginários

rodopiam seus mágicos bailados,

                                    desengonçados.

 

Participo da festa.

Deixo a espera vadia,

entraves e outros porquês

                     do lado de fora.

 

Recolho pó, teias e cacos.

Limpo, organizo,

desentulho...

                      Libero espaços.

 

Desbravo o sombrio.

Rompo,

abro janelas.

Feixes de luz bem-vindos.

 

Espaço readequado,

conquistado.

Aurora?

         Liberto a alma.

AUGUSTA FARO(1948) poeta goianense, é pedagoga e mestre em teoria de literatura e linguística. É pioneira da poesia infantil no estado de Goiás e escreve também contos. Publicou Mora em mim uma Canção Menina (1982); Lua pelo Corpo(1984); O Estado de Graça(1988);Avesso do Espelho,(1995) prêmio nacional UBE-Rio de Janeiro.

COMPROMISSO

Nada a ver com a voz

mas a palavra

 

Nada a ver com o pulso

mas o sangue

 

Nada a ver com as chaves

mas a terra

 

Nada a ver com as sombras

mas os gestos

 

Nada a ver com a oferta

mas o pranto

 

Nada a ver com o fardo

mas o caminho

 

Nada a ver com a guitarra

mas a canção.

MOIRA

Nasci do ombro esquerdo de minha avó,

por isso tenho um olho no meio da testa,

que vê o fundo dos rios

e o contorno mais longe das montanhas.

 

Nasci em noite de tempestade

quando um raio abriu a concha

da escuridão mais escura.

 

Nasci olhando de lado,

como quem vê a poesia

brotando do chão

e me encharcando os sapatos.

RETRATO

Aparente momento

atuando no tempo.

Pausa de paz desenhada

impressa transparência

— um sorriso.

 

Depois do instante

aderido às veias do papel

— quais as faces?

 

BALANÇO

Metade de mim é manca

outra parte se arrasta

um tanto meu se desfaz

outra tenta se afirmar.

 

Parte de mim desconheço

parte reconheço e fico

outra porção me reparto

multiplico os duros olhos

e somos a boca fechada.

 

O que resta de mim,

salgo com sal grosso

e ponho no varal

para secar.

 

 


Publicado por Rubens Jardim em 02/06/2016 às 23h24
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