Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
29/11/2016 00h57
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (84ª POSTAGEM)

KÁTIA BENTO (1941) poeta capixaba, cursou enfermagem no Rio e fez parte do grupo AdVersos até meados de 1972. Participou da antologia Las Voces Solidárias, Buenos Aires (1978) e conquistou destaque com vários poemas-postais. Publicou: O azul das montanhas ao longe(1968), Principalmente Etc(1972), Contrafala(1980) e Romanceiro de Amuia(1980).

NOSSA SENHORA DA TELEVISÃO

Esta imagem

entronizada na sala

manda que cales.

 

Com sortilégios

lança quebrantos -

luzes que tonto

comes e bebes.

 

Ela decide

teus gestos, dita

o prato do dia -

te veste e doma

 

:esta imagem fria

da redoma.

 

LINHA DA VIDA

A vida se desenrola

no dia a dia entre os dedos -

meada frágil/arisca

fio

que mal contido/à mão

se solta/esvoaça.

 

Então se converte em calos

o ato de reavê-la -

dias a fio enrolá-la,

fina linha em carretel.

Retê-la, no incessante

gesto que vinca a pele.

 

Então se converte em luta

o jogo de atar à palma

da mão,

a linha da vida -

entre a tatuagem do corpo

e o sopro vário do vento.

 

VERBO SONEGAR

Na declaração de bens ninguém

conta a árvore que tem.

 

No imposto de cada ano

se escreve a casa, o terreno.

 

mas fica em claro o espaço

da flora que não se declara -

 

omissa a linha vaga

da árvore que se sonega.

 

Na folha do documento

não se lê flor galho tronco -

 

o amorável bem imóvel

se oculta em silêncio e trinco.

 

Homem de bem, ninguém,

ao fisco, preto no branco,

 

põe esse verde a limpo.

 

O VENTILADOR

Com todas as letras

espalha-se o vento.

 

e se pronuncia

sutil movimento

 

:cabelos flutuam

papéis esvoaçam

 

as coisas em leque

dançam no espaço

 

Mas vem uma pausa

na eletricidade

 

e o sopro suave

já nada ventila.

 

E a dor outra vez

é a súbita sílaba

 

que pousa na pele

se finca e fica.

SILVIA ROCHA(1958) poeta paulistana, é formada em jornalismo e mestre em comunicação social pela ECA. Praticante do haikai, participou de antologias e já venceu o concurso de poesia falada da revista escrita(1987). Ministra oficinas de haikai e já publicou Estação Haikai(1988) e Gestação Haikai(1990).

sem ninguém

sem vintém

como ser zen?

......................................................................

flores de maio

no meu quintal lavado

gotas de orvalho

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solidão

não te come não te mata

te retrata

.......................................................

meus guias do além

me guiam

além

...........................................................

sopro de vela

me leva

me vela

..............................................................

curta

a vida é

curta

..............................................................................

crescer dói

não crescer

destrói

LÁZARA PAPANDREA (1965), poeta mineira, é formada em história e pós graduada em teoria literária. Coordenou até 2011 o grupo Café com Poesia e Arte, que ainda faz apresentações regulares no Museu de Arte Moderna Murilo Mendes. Publicou o livro de poemasa Tudo é Beija - Flor(2016) Vive atualmente em Juiz de Fora.

Amo absurdamente

O chão sobre a casa

O telhado dos dias escassos

Enterrado a sete palmos

Rasos.

Quando encero meus olhos

Ainda ouço passos.

Os fantasmas agora me amam

Também absurdamente.

E me chamam.

E me chamo sarcasmo.

 

NOS CONTORNOS DA MÃO

no contorno das mãos

um destes silêncios

não gestados

 

nos dedos cerrados

imprestáveis girassóis

emprestados à manhã

que tarda a esconder o sol

 

aprendo a me esquivar

dos boatos

[com os gatos]

 

amuo

amo

amuados

miados

 

meus punhos tão fechados!

 

CRISE HÍDRICA

seco

o corpo

o copo

o vento

o medo

a rua

o alento.

secura de não dar enredo

de não poder poesia

de não saber candura.

seco

feito placa dura

de cimento num esquecimento

de séculos.

seco, e nossos dedos

rígidos de pecado e dádivas.

...............................................................................

você me diz que a morte é regra

nem me despedaço!

não acredito

não quero.

se essa for a grande verdade

me cego

me chago

me sangro

me esmero para não acreditar.

não será essa a cilada.

não será esse o tango

a dançar.

não agora nem nesse lugar

de demoras no seu quadril.

 

MELINA FLYNN (19  ) poeta japonesa, nasceu em Myioshi, Japão, mas passou a maior parte de sua vida no Brasil. É atriz, escritora e tradutora. Gosta de cinema, fotografia, música, literatura e escrita. Canceriana é descrente de signos, novelas, futebol e religião. Explica o escrever como o expectorar. Não escreve para que se entenda e sim para que se sinta. Publicou o livro Amores Brutos (2011)

 

Não se iluda não

que eu te fascino

pra te ter

depois te engulo

e te cuspo

porque não quero mal

pro meu corpo

viro bicho

boca vermelha

olhos negros

eu quero tudo

que me faça mais forte

felina

ferina

fera

se digo que sou tua

é pra fazer pose

não sou moça

não tenho postura

sou vaidosa

eu não sumo

eu somo

me lanço

avanço

em ti

provoco

em mim

uma revolução

pra depois contar história

ter as marcas e os gostos

os sotaques e os trijeitos

pra ser várias

até achar uma

que me convença

 

NADA

Estou descalça

taça na mão e

uma gota de vinho

em meu seio.

A cidade me estupra

e por dentro

me soa um alarme:

ou me salvo ou morro.

MISÉRIA

As gentes me ferem

quando falam de si

e eu me ponho em soluços

porque sou demais minha

e sei tanto de mim

que é como labirinto:

já não tenho saída.

A suficiência não está

em se pintar por fora

pra se fingir por dentro

assim estou crua

de pés pelados

arranquei a roupa da vontade

e me coloquei pra descansar

entre lençóis brancos

sentindo teu cheiro de chuva

pedi antes que me levasse pra casa

me desse um filho

e três dias te olhando de graça.

Acabei entreaberta

me esfregando na saudade.

 

DESLINDAR

são quatro e trinta da manhã

sozinha

dez horas o sol me esmurra a cara

sozinha

café

ração para o gato

banho

jornal

sozinha

um pouco de fome e náusea

migalhas na mesa

cabelo esvoaçado

(me dá a tua mão)

triste é me ver assim

e nem vejo mais

não passo pelo espelho

não lembro

mas me arrepiam os poros

quando penso

sozinha:

escrevo

pra te tocar.


Publicado por Rubens Jardim em 29/11/2016 às 00h57

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